domingo, 14 de março de 2010

Mesa Redonda: Movimentos Sociais e Desenvolvimento

TECENDO AS REDES: MOVIMENTOS SOCIAIS E DESENVOLVIMENTO


Carlos Dayrell – CAA NM[1]


A imagem que me vem à cabeça no contexto atual quando se fala em desenvolvimento é a de um grande navio. O barco carrega cargas diversas e passageiros, estes divididos em classes: 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, além de uma parcela de desclassificados escondidos em seus porões.

Alguns dos marinheiros, das marinheiras, sentiram no ar, pelas ondas do mar, pelos rumos dos cardumes de peixes, que a direção para onde segue o navio é de altíssimo risco: temporais, grandes icebergs podem estar à frente e o barco precisa urgentemente mudar de direção.

Estes cochichos chegam até aos ouvidos do comando. Houve muita discussão. O comando convoca especialistas para analisarem os mapas climáticos e de riscos – muita discussão, muita divergência, até que chegam à conclusão que, de fato, os velhos marinheiros estavam com a razão.

Durante este tempo houve uma troca de comando e o novo comandante ordenou mudanças nas condições dos passageiros da 4ª, 5ª classe, dos desclassificados em geral. Houve distribuição de beliches, melhoraram a alimentação, a limpeza dos banheiros, alguns dos passageiros passaram a ocupar camarotes e quartos nos andares de cima que estavam vagos.

Mas, o problema da direção que o navio deveria tomar, continuava. Os donos das cargas insistiam que o barco deveria seguir adiante, não deveria mudar de rumo, os prejuízos na demora seriam grandes. Insistiam que o barco era potente e seguro para enfrentar os temporais, que uma boa lona na cobertura poderia diminuir os sofrimentos dos desalojados.

(Por segurança, alguns deles foram se certificar das condições dos botes salva-vidas. Viram que eram suficientes pelo menos para os das 1ª e 2ª classe)

Os dias mostraram que os velhos marinheiros estavam com a razão: o tempo mudou bruscamente com um vendaval nunca visto. O comando até que tentou mudar a direção, diminuir a velocidade, mas os imediatos, os donos das cargas, não concordaram em frear o barco, com mais velocidade poderiam sair mais rápido da zona de risco – colocaram mais lenha nas caldeiras, porém mudando levemente a direção do barco.

Era noite e fragmentos soltos de icebergs começaram a bater nos cascos do navio.


ALINE LUZ era uma dessas antigas marinheiras. Era conhecedora do mar, sabia interpretar as mudanças que podiam ser pressentidas apenas pelo ar. Tratava com respeitosa atenção os passageiros em suas reivindicações, alertando, com esperanças, sobre os enormes riscos da direção do barco.

Foi com ela, com outros amigos que circulavam em sua volta, que passamos a olhar a nossa região com outros olhos.

Com ela aprendemos a tentar superar esta visão colonizadora sobre a nossa região: de que ela era pobre, que precisava se desenvolver, se inspirando no sul maravilha.

Com ela aprendemos também que precisávamos também de saber e intervir na direção que o barco tomava.

Com ela passei a apreciar as belas paisagens do sertão, a me encantar com os seus povos: marias do rosário, antonios inácios, braulinos, cristovinos, donas nenzinhas ...

Povos que foram e continuam sendo escanteados, expropriados de suas terras, ridicularizados pela sua cultura.

A cobiça internacional sobre os seus territórios, sobre os recursos naturais do sertão é imensa: O SERTÃO PRECISA SER DOMESTICADO. Não importa o custo!

Pois, o aprendizado que tive com os seus povos, é de que estes podem dar uma contribuição fundamental no processo de mudança da direção do navio: eles são possuidores de uma cosmovisão que não separa o campo da produção, do campo social, do campo da natureza – Tudo faz parte do Todo.

São possuidores de um conhecimento invejável sobre os ecossistemas e sua biodiversidade; são detentores de um patrimônio fundamental para o período de mudanças climáticas que já estamos vivendo – as sementes tradicionais – os recursos genéticos.

Historicamente, organizaram uma economia, e continuam até hoje, na maioria das vezes na clandestinidade, organizando uma economia fundamental para o auto-abastecimento regional e mesmo nacional.

Diversos estudos provam isto: que geram mais renda, mais ocupações, manejando os ecossistemas e os seus recursos com muito mais eficiência do que os promovidos pelo agronegócio. Exemplos podem ser citados tanto aqui no Norte de Minas quanto no restante do Brasil. Movimentando arranjos produtivos diversos em torno dos cultivos como o feijão, a mandioca, o milho, a cana, a criação de animais, o extrativismo como o pequi e dezenas de outras espécies nativas.

São povos que estão resistindo – como dissidentes da modernização, se constituindo em verdadeiros focos de resistência civilizatória ao avanço do capital.

São muitos os exemplos que podem ser citados: dos gerazeiros, veredeiros, quilombolas, vazanteiros, Xakriabás, catingueiros ... Que vem se movimentando, ignorados pela grande mídia, construindo alternativas produtivas, de educação, de inserção nos mercados, de defesa e proteção de seus territórios tradicionais.

Constituindo territórios livres do grande capital, cuja cobiça sobre os seus recursos se exacerba cada vez mais. Uma verdadeira insurgência dos povos nativos que não aceitam as tentativas de domesticação do sertão, não importa se pela direita ou pela esquerda.

Quais são os desafios? Precisamos mudar a direção do barco. Ela não vai ser mudada pelos donos da carga, que possuem um grande poder de influência no comando.

Ela não vai ser mudada pelos de cima porque eles quase não sentem os efeitos dos temporais. Quase sempre estão em festas. E se o barco arriar, vão ser os primeiros a entrar nos botes salva-vidas.

A direção do barco não vai ser mudada apenas pela vontade ou apenas com discursos inflamados, mas por iniciativas concretas que se ensaiam em diversos campos e que precisam ser qualificadas.

Problemas? Não temos a unidade que já tivemos em outras eras. Muitos continuam seduzidos pelos cantos das sereias. E alguns dos movimentos foram se burocratizando. Falam em diversidade, mas não aceitam o diálogo com outras perspectivas societárias.


Propostas? A Universidade precisa chegar até estes povos – ouvi-los – fortalece-los em suas reivindicações e, principalmente, na construção de suas propostas.


[1] Síntese de palestra em mesa redonda do II Congresso em Desenvolvimento Social & II Seminário Norte-mineiro de Ensino e Pesquisa em História da Educação – UNIMONTES / Montes Claros, Março de 2010


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