sexta-feira, 28 de março de 2014

. . . confabulando com o SENHOR!


O sono não vem. As seguidas lembranças de D. Dochinha me vêm à mente enquanto ela debate, confabula: estes seus momentos de vida podem ser os últimos . . . Podem?, falamos assim porque ela sempre nos surpreendeu. É impossível dizer quantas vezes. Pouco sei de suas histórias quando morava ainda em Jequitaí, em Várzea da Palma, quando mudou para Sete Lagoas. Sei que aqui, nesta cidade, que ela declarava ser a melhor do mundo, fui o primeiro a nascer, isso em 1953. Quando veio para cá, já tinha sete filhos. Fui o oitavo. Ainda nasceram outros três. Mas sei que a iniciativa de vir para Sete Lagoas teve o dedo de Dochinha, saindo de uma pequena fazenda em Várzea da Palma, onde foram morar após o incêndio de um comércio que possuíam naquela cidade.
Em Sete Lagoas, por muitas vezes surgiu à frente de diversas iniciativas, sempre ao lado do Sr. Geraldo, nosso pai. Surpreendeu-nos por diversas vezes. Recebendo jovens das cidades vizinhas que procuravam a cidade para aqui estudar. Quantos de nós não crescemos com a casa sempre cheia, nos pensionatos que complementavam a renda familiar? Assim íamos sendo educados, em meio às pessoas que agregava em sua volta. As últimas iniciativas, posso falar com muita certeza: ao ficar viúva não concordou que A NOSSA CASA fechasse as portas sem antes quitar as dívidas que se avolumaram frente aos tributos da receita, cujo pagamento foi falseado pelo então contador.
Surpreendeu novamente, quando finalmente conseguiu repassar a loja já devidamente reparada. Convidada a ir morar com as filhas, optou por um outro caminho. Pegou suas trouxas e foi para Belo Horizonte: alugou um pequeno apartamento, entrou para o folcolares, fez curso de yoga, de alimentação natural, onde também dava pensão. Quando sentiu que estava preparada, resolveu voltar para Sete Lagoas e, de forma surpreendente, dá inicio a uma oficina de Yoga direcionada a idosos. Juntamente com um restaurante natural. Nesta época não se falava de idosos, eram simplesmente velhos! ... velhas!
Refaz, em uma jornada a partir do final dos anos 1970, uma longa luta contra o preconceito vivenciado pelos idosos e idosas, a favor da terceira idade. É quando funda o Grupo Convivência. E o faz congregando idosas que viviam na periferia da cidade. Eu, que cresci vendo-a trabalhando com a infância abandonada - quantas vezes ela nos levava até aos orfanatos para brincar com os meninos neles recolhidos? quantas vezes fomos até a periferia levando presentes, cestas básicas, material de construção, para famílias que viviam na extrema pobreza? - desde longe a via ingressando em outra frente, levantando outras bandeiras, agora contra o preconceito e a exclusão dos idosos, uma luta pelo seu reconhecimento iniciada ainda no final dos anos 1970. Ela nos surpreendeu chamando a todos e todas para o cuidado com a saúde, com a alimentação, com a necessidade de se preparar para este momento precioso da vida.
Antecipando às políticas que hoje estão consagradas, deu muitas palestras, recebeu muitas visitas, participou de audiências em Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas, no Congresso Nacional. Foi à Espanha, Itália, Roma. Conheceu Chiara Lubich, de quem ficou amiga, apoiou a vinda do Focolares à Minas Gerais, à Sete Lagoas. Sei que esteve com o Papa e foi abraçada pelo Lula quando da promulgação do Estatuto do Idoso. O ministro Patrus Ananias era considerado, por ela, seu filho. Fez muitos milagres em vida, por isso, surpreendentemente não queria simplesmente partir.
Assim, sua vida foi se tornando para todos nós uma missão que pouco compreendíamos. Com sua natureza humana, suas implicâncias, seu orgulho e também sua humildade, quantas lições não tivemos com ela? Quantas vezes ela nos surpreendia ao ler a nossa alma, ao dizer o que precisávamos ouvir? E ela sempre dizia: era a voz do Espírito Santo. Eram milagres que fazia em vida. Sua amizade não tinha fronteiras. Recebia quem batesse à porta. Nós filhos, filhas, netos, netas, genros, noras, depois bisnetos, bisnetas, tataranetas e tataranetos, primos, primas, tios e tias fomos privilegiados, pois para ela a família era tudo. Família no sentido ampliado, pois sua família foi muito maior que todos nós. Muito maior. As lembranças desta maioridade são muitas, muitas. Amigos e amigas que adentraram na família, comungando de seus projetos, de seus ideais. Tantos? Cito um em nome todos outros: o José Raimundo, implantando o moderno Restaurante Vida Saudável; cito uma, em nome de tantas outras: Lani, que junto com Oli, seu marido, e com suas filhas, a acolheu como mãe, como avó. E tantos outros que para nós pode até se perderem no anonimato mas, para ela não, estão sempre presente. Uma gratidão imensa a todos!
Muitas foram as vezes em que, com o carro cheio, até mesmo em ônibus fretado, com agricultoras e agricultores, indo a Belo Horizonte ou de lá retornando (em lutas por direitos), ao passar por aqui já tarde da noite, nos recebia a todos, com lanches, com pousadas, com palavras de carinho e de apoio, em sua casa sempre aberta?  Assim, de repente, em Porteirinha, na Tapera, em Brejo dos Crioulos, eu recebia abraços, lembranças, presentes, que eram direcionados à senhora minha mãe.
O sono não vem. Enquanto isso sei que D. Dochinha está debatendo com os anjos se vai partir ou não. Não sabemos por quanto tempo este debate vai durar. Não sabemos. Com certeza ela vai confabular com o SENHOR, com a SENHORA, o momento de sua transmutação. Vai confabular com o Sr. Geraldo, com o Gegê, que a esperam. A hora da partida, só mesmo o SENHOR vai com ela acordar. Por isso, a surpresa, pois os milagres em vida foram muitos. Em vida como santa, ela construía os céus aqui na terra. Chamava de parosia, palavra que nunca tinha ouvido falar até então.
Estamos com ela no Hospital Nossa Senhora das Graças. Sendo atendida com um carinho imenso por médicos, médicas, enfermeiras, enfermeiros, atendentes, fisioterapeutas. Sua aura de Santa em Vida contagia a todos que a ela se dirigem. Daqui, desde este quarto, vamos orando. Sabemos que as orações estão ecoando de todos os cantos, dos seus muitos amigos. Desde o sertão de onde nasceu, atravessando continentes, chegando aos céus, esperando os resultados de sua confabulação com o SENHOR.
 Dona Dochinha, como te amamos!!! O quanto te amamos!!! Esta sua família maior cada vez mais encantada!!!              
Sete Lagoas, às duas e quatro da manhã do dia 28 de março de 2014.

Muitos foram os momentos que ela nos alegrou. 
Foi com alegria que Montes Claros a recebeu quando fez 96 anos!


































sábado, 22 de março de 2014

SOB AS SOMBRAS DO PIQUIZEIRÃO, GERAIZEIROS DO ALTO RIO PARDO MANDAM RECADO A SETE LAGOAS, BELO HORIZONTE E BRASÍLIA.

As frutas servirão de alimento, as folhas, de remédio,
onde as águas saem do Santuário!
As águas não vão secar!
D. Lucia, interpretando Ezequiel, 47.

No dia 20 de março, véspera do Dia Mundial das Florestas, 49 lideranças geraizeiras do Norte de Minas, homens, mulheres e jovens, encontraram-se sob as sombras do Piquizeirão, considerado o maior pé de pequi do mundo. É o último remanescente de uma população de imensos pés de pequi que cobriam as vastas chapadas das altas serras do Espinhaço, entre os municípios de Montezuma, Vargem Grande e Rio Pardo de Minas. O motivo do encontro: discutirem a proposta de um projeto de lei que torna o Piquizerão patrimônio material das comunidades geraizeiras e darem continuidade na luta pela criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável – RDS - Nascentes dos Gerais.

Irmã Iria Maria animou a celebração relembrando as mulheres bíblicas que tanto resistiram contra a violência e a exploração. Não sem razão, pois, no dia 01 de março de 2014, conforme consta de Boletim de Ocorrência de número REDS 2014-004704329-001 emitido pelo 3º GP/2 Pelotão da Polícia Militar de Salinas, duas mulheres geraizeiras, a jovem Thayres Santos, de apenas 18 anos e sua mãe, Maria Joelice, foram covardemente humilhadas e presas, sendo conduzidas algemadas até a delegacia de Novorizonte. Motivo? Por filmarem e denunciarem a violação de direitos que estava sendo cometida pela guarnição da Polícia Militar em suas residências em função de uma denúncia anônima que resultou na ordem de busca e apreensão de armas na propriedade de Orlando, uma das lideranças do Movimento Geraizeiro. Nada foi encontrado.

Em mais uma tentativa de criminalizar as comunidades que resistem contra a degradação dos cerrados e de suas águas, as duas mulheres tiveram os seus direitos humanos violados. Por protestar de forma organizada e pacífica contra o avanço de milhares de ha da monocultura do eucalipto implantada em territórios das comunidades tradicionais geraizeiras, exatamente nas cabeceiras e áreas de recarga. O que está por traz são os interesses de empresários que a todo custo tentam dar continuidade na grilagem de terras públicas no Norte de Minas contando com o beneplácito do judiciário e do governo do estado.

Sob as bênçãos do Piquizeirão as lideranças narraram os 12 anos de luta pela proteção de seus territórios e pela criação da RDS Nascentes dos Gerais (anteriormente RESEX Areião Vale do Guará) em uma área de 38 mil ha que ainda se encontra parcialmente protegida contra a cobiça dos carvoeiros associados ao complexo Siderúrgico Florestal de Minas Gerais. Narraram mais de uma dezena de empates promovidos por mulheres, homens e jovens para evitar que as máquinas subissem ao Areião, o corte a foice de 120 ha de mudas de eucalipto que foi plantado em uma das nascentes do Córrego Vale do Guará, as Romarias do Areião realizadas anualmente, o plantio de quase 2 mil mudas de árvores nativas nas nascentes e áreas degradadas e a instalação do Acampamento Geraizeiro Quintino Soares com o apoio da OLST, no município de Montezuma. 

O Sr. Mito lembrou que neste Acampamento, em apenas 20 dias, colheram 7.200 caixas de pequi que foram carregados para Brasília e Goiânia em 12 caminhões trucados. Que todos os pequis foram coletados do chão, sempre com a preocupação de deixar outros tantos para os animais ou para a regeneração dos cerrados. Que, apesar da perda de praticamente 100% das lavouras em função do terceiro ano seguido de seca, tiraram uma renda bruta de R$ 72.000,00 (setenta e dois mil reais), distribuídos entre as 35 famílias que ainda vivem no Acampamento. Ele lembrou: ainda vivem porque hoje estamos entregando o acampamento em função de mais uma ordem de despejo, agora em favor da Fazenda Estância Lagoa da Pedra, de Sete Lagoas. Tramitando há mais de um ano na Vara Agrária, o ICMBIo, apesar de seguidamente alertado, não entrou  como parte da ação reclamada pela equipe de advogados que vem defendendo na justiça, as famílias geraizeiras que lutam pela criação da RDS. Por isso o despejo.

Mas, os Geraizeiros deixaram claro os recados que enviam à Sete Lagoas, à Belo Horizonte e à Brasília: não vão deixar a Empresa Estância Lagoa da Pedra cortar um pé de planta nativa do cerrado e que nenhum caminhão de carvão vai sair da área de terra pública que estão tentando grilar; não vão aceitar que o Governo de Minas Gerais faça nenhum contrato de arrendamento com empresas eucaliptoras e que vão denunciar à Comissão de Direitos Humanos da ALMG as seguidas violações de direitos promovidas pela Polícia Militar de Minas Gerais; e que vão entregar a própria vida na defesa do território tradicional geraizeiro apesar da omissão do ICMBio e do Ministério do Meio Ambiente que reluta em criar a RDS em função dos interesses escusos de empresas – eles afirmam: “a guerra está apenas começando, é a guerra pela vida!”

Montezuma, aos 20 de março de 2014