As
mudanças ocorridas no campo com a implementação da política de ampliação da
fronteira agrícola no Norte de Minas, a partir dos anos 70, desorganizou as
dinâmicas vigentes na região, modificando as formas de trabalhar, viver e se
relacionar com a natureza de vários indivíduos, grupos e populações que ali
viviam. Pretendo, neste artigo, apontar algumas alterações sofridas pela
população rural, especificamente, pelo que hoje se denomina agricultura
familiar do município de Rio Pardo de Minas, procurando analisar como essas
mudanças foram vivenciadas no que se refere principalmente ao uso da terra, peça
chave no entendimento desse processo de transformação. Assim, questiono até que
ponto tais mudanças reforçaram ou não o sentimento de pertencimento desses
grupos, do seu lugar, suas vivências e saberes, e quais estratégias emergiram
na busca pela permanência dos seus modos de vida. Paralelamente, tentarei fazer
uma reflexão desse evento sobre consciência de Classe, segundo abordagens de
Thompson em Usos e costumes comuns.
A
trajetória histórica de uso da terra no Brasil é permeada por complexidade e
conflitos oriundos da forma de apropriação. Renata Rastrelo e Silva (2009),
citando João Pedro Stédile, chama a atenção para o sistema de Plantation adotado
na colonização do Brasil. Os portugueses, durante a colonização, com o intuito
de gerar lucros, montaram uma estrutura produtiva baseada nos interesses do
capital mercantil, implantando no Brasil o sistema de organização da produção
agrícola que “ficou conhecido como Plantation, cuja produção era totalmente
orientada para a exportação utilizando da mão de obra escrava através do
plantio de monoculturas em grandes fazendas” (RASTRELO E SILVA, 2009).
Como afirma Stédile, nesse momento da colonização,
as terras mão eram vendidas, pois a Coroa Portuguesa dava aos colonizadores a
sua posse delas para que estes pudessem produzir e gerar lucros. Somente em
1850, quando se promulgou a primeira Lei de
terras no Brasil, que a terra tornou-se mercadoria, ou seja, a partir
daí ela passou a ser comercializada e para se tornar um proprietário de terras
era preciso comprá-las, isso se deu porque,na iminência da abolição da
escravidão, era preciso impedir que os homens que se tornariam livres
adquirissem terras, visto que não tinham meios para isso, isto é, o dinheiro
para comprá-las.
(RASTRELO E SILVA, 2009 p. 143).
Manuel
Correia de Andrade (1998) nos informa, no entanto, sobre a agricultura que
também se estabeleceu nos primeiros anos de colonização nos interstícios da
sociedade açucareira, mais orientada ao abastecimento interno. Segundo este
autor, Duarte Coelho, em 1550, escreve uma carta ao rei de Portugal onde coloca
a importância desta agricultura para o abastecimento dos que viviam na
capitania:
Os
mais ricos, montavam engenhos, outros plantavam canaviais, tornando-se
lavradores que moíam suas canas nos engenhos dos primeiros, e outros, mais
pobres, plantavam algodão e outros mantimentos que são a principal e mais
necessária cousa para a terra (ANDRADE, 1998 p. 64).
É
essa agricultura de produção de alimentos e de criação de gado que, ao confrontar
o sistema de Plantation, perde suas áreas, paulatinamente, durante todo o
século XVI e também durante o século XVII, e vai subindo o rio São Francisco. Caminhando
à sombra dos currais, essa agricultura ocupava múltiplas e pequenas áreas em
ambientes também muito diversos, nos locais mais úmidos e com solos mais
favoráveis. Segundo Manuel Correia de Andrade, estudioso da geografia do
Nordeste, “pequenas manchas, ilhas isoladas na vastidão das caatingas”. (LUZ DE
OLIVEIRA et alii, 2011).
Essa
agricultura ganha novo reforço tanto com o declínio da mineração, como
também com a abolição da escravidão,
onde uma parte da população de negros e mestiços se dirige para áreas não
ocupadas pelos brancos, localizadas muitas dela no sertão brasileiro, uma vez
que as terras próximas ao litoral estavam ocupadas com as culturas de exportação
e essa população não tinha meios para se tornar proprietária de terras:
A
longa caminhada para o interior, para o sertão, provocou a ocupação de nosso
território por milhares de trabalhadores, que foram povoando o território e se
dedicando a atividades de produção agrícola de subsistência. Não tinham a
propriedade privada da terra, mas a ocupavam, de forma individual ou coletiva,
provocando, assim o surgimento do camponês brasileiro e de suas comunidades” (RASTRELO
E SILVA, 2009 p. 143, citando STÉDILE, 2005).
Com
o passar do tempo, a pressão dos interesses do capital no campo foi aumentando,
incentivando a adequação às suas regras, à lógica de obtenção de lucros, fato
evidente entre as décadas de 1960 e 1980. Nesse período a agricultura
brasileira como um todo foi estimulada a especializar a sua produção,
inserindo-se cada vez mais no mercado. Rastrelo e Silva afirma que a posse da
terra no Brasil é marcada pela proeminência dos interesses capitalistas do
latifúndio e dos poderosos que detinham parte dela. Contudo, ressalta que as
pessoas não são passivas, elas resistem, lutam contra a exploração, desigualdade,
exclusão e assim a terra é um dos objetos dessa disputa. Para a autora, os movimentos
de luta pela terra ocorridos nos anos 1950 foram reprimidos pelo golpe militar
e a luta pela reforma agrária no Brasil, durante o regime militar, foi
desqualificada, sendo associada ao comunismo. O que se colocava, então, como
solução para os problemas relativos à terra, naquele momento, era a ocupação de
outras regiões ainda pouco exploradas (SILVA & RASTRELO, 2009).
A
geopolítica dos militares, que tomaram o poder através do golpe de 1964, estimulou
a ação governamental de expansão da fronteira agrícola em direção ao norte do
país e ao cerrado e, também, na transformação da base técnica da atividade
agropecuária procurando, assim, não tocar na estrutura fundiária brasileira. A
lógica era o plantio de monoculturas, fosse de grãos ou pastagens, em grandes
propriedades e com a produção direcionada ao mercado externo, ficando conhecido
como a modernização da agricultura.
Já
nos anos de 1980 ocorre a retomada da discussão sobre a reforma agrária,
consequência do modelo de desenvolvimento implantado pelos militares que se por
um lado gerou o aumento da produtividade, por outro gerou vários problemas
sociais e ambientais, como o êxodo rural, pela falta de condições de permanência
no campo, intensificação da concentração fundiária, levando a vários conflitos
pela posse da terra, (SILVA & RASTRELO, 2009) além do desmatamento
generalizado das matas nativas, uso de agrotóxicos, contaminação das águas e
dos solos. O que aconteceu também, de forma significativa em Minas Gerais e, em
particular, no município de Rio Pardo de Minas, localizando na região Norte do
Estado de Minas Gerais. Essa região também desenvolveu, ao longo dos séculos,
uma agricultura que ficou à margem da lógica capitalista e onde hoje diversas
comunidades tradicionais reconhecidas como geraizeiros vem emergindo na luta
por direitos (NOGUEIRA, 2011, BRITO, 2006; DAYRELL, 1998).
Percebe-se
que a terra torna-se um campo de disputa, palco de várias transformações e
conflitos e, se muitas vezes, fazemos uma leitura unilateral dos fatos, vale
ampliar a nossa lente e identificar um palco não hegemônico, seguido por
ideologias diferenciadas. Pois, de acordo com Stuart Hall e Georges Rudé, a ideologia
faz parte da vida do homem, em cada contexto. Não tem como viver sem ideologia. Indivíduos
que passaram pela experiência de perder sua terra, sua fonte de vida não se alienam
aos ditames do opressor, reformulam quase que instantaneamente em um movimento
de ir e vir, uma nova ideologia que se constituirá em consciência primeiro
individual e mais tarde em consciência de classe.
Aqui
no caso, a terra é fonte essencial de vida, por isso é disputada, ainda que nem
sempre conquistada, mas é disputada por ter um significado particular para cada
indivíduo e para um determinado grupo. Grupo de excluídos da terra, mas não
excluídos de coragem, de consciência, de projeto, de uma ideologia, talvez
ainda não manifesta, esperando que os processos históricos proporcione esta
tomada de consciência de classe.
Thompson
traz uma noção de classe em que a “consciência de classe” se baseia nos
processos históricos vivenciados por cada indivíduo: “classe é uma relação histórica, presente
em pessoas e contextos reais”. Para Thompson, a
classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências, sejam
herdadas ou partilhadas, percebem seus interesses sendo confrontados com
interesses que diferem ou se opõem aos seus (HOMENS NO TEMPO, 2011). Nesse
caso, a consciência de classe unifica pessoas e acontecimentos distintos, tanto
no que se refere “à experiência como à
consciência”. E mais, se a experiência é determinada por fatores externos
(especialmente as relações de produção) a consciência não o é, é fruto de um posicionamento
que surge a partir da experiência que pode ser individual ou coletiva. Isso
porque cada ser humano pode lidar com uma mesma experiência das mais variadas
formas (um pode se entregar ao alcoolismo, outro a um fundamentalismo
religioso, outro lutar para satisfazer seus interesses). Para Thompson, “classe
não pode existir sem a consciência de classe. Então é necessário se compreender
que a formação da classe depende tanto de aspectos objetivos (a experiência)
como subjetivos (a consciência). (HOMENS NO TEMPO, 2011).
Deste
modo, o presente artigo tem como pressuposto analisar as experiências vividas
pelas populações das comunidades rurais de Rio Pardo de Minas no contexto das
mudanças impostas pelo capital que os levaram a uma ação não passiva. Mudanças
essas que aconteceram de forma significativa a partir dos anos 1970 e,
principalmente na década de 1980. Ainda sem entenderem que o que estaria por
vir, mas ao mesmo tempo sentindo as limitações que foram impostas aos seus
espaços, não só físicos, mas também sociais, as famílias que ali viviam tiveram
suas terras ocupadas por empresas de reflorestamento, fato que alterou de modo
significativo toda uma estrutura de convivências, modos de vida, sistema de
produção que perduraram por várias gerações. Diante dessa ocupação, as famílias
se movimentaram a fim de garantir suas sobrevivências e conviver com aquelas
mudanças. Ainda que para algumas
pessoas, tais mudanças anunciassem “progresso” e “desenvolvimento”. A
convivência com estes interesses antagônicos, aos poucos foram fazendo perceber
para quem era esse progresso e desenvolvimento, o sentimento de pertencimento a
uma mesma classe foi aguçando, fazendo emergir várias estratégias de
articulação, que expressava o fortalecimento daqueles grupos.
Assim,
considero que talvez nesse momento de reconhecimento coletivo de prejuízo, diante da situação de perda não só da terra,
mas também de valores e referências, ocorreu uma identificação coletiva de
“classe” ao perceberem que aquelas mudanças representariam para eles o
comprometimento e desorganização dos
seus modos de vida e saberes. Isso os impulsionou a buscar alternativas, levou-os
a repensar o que queriam e o que seria bom para eles. Nesse exercício de
reflexão sobre o que era e não era importante, os grupos foram reafirmando os
seus costumes e modos de vida, entendendo que aquele lugar a eles pertenciam
ancestralmente. Talvez, esses grupos precisassem passar pela experiência de
perda e alteração de seus valores e modos de vida, pare se reconhecerem
enquanto grupo (que sofrem a mesma exploração), portanto classe, e no movimento
de negação da exploração (da imposição do capital), tendo consciência do que não
queriam , tenham atingidos, no dizer de Thompson, a consciência de classe. Consciência
que os levou a uma maior organização e fortalecimento, que os permitiu traçar
um plano de desenvolvimento para “seu lugar”, buscando apoios diversos na área
jurídica e técnica, com instituições de ensino, pesquisa e extensão. Onde, uma
organização sindical, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Pardo, entra
apoiando de forma ativa a luta pelos direitos territoriais das comunidades
rurais. De tal modo, esta análise estabelece conexão com a reflexão feita por Thompson,
em que “a classe acontece quando alguns
homens, como resultado de experiência comuns (herdados ou partilhados), sentem
e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens
cujos interesses diferem ( e geralmente se opõem) dos seus (HOMENSNOTEMPO,
2011).
A
região do Alto Rio Pardo no contexto da expansão da fronteira agrícola
Localizado
no extremo norte de Minas Gerais, a região do Alto Rio Pardo tem uma história
que, segundo Neves (1908), remonta os anos de 1553 quando da expedição
portuguesa que adentrou o sertão norte do atual Estado de Minas Gerais, passando
pela região do Alto Rio Pardo, denominada de “Expedição de Spinosa” que saiu de
Salvador da Bahia. O Cônego Newton D’Ângelis (1998) informa que a ocupação
colonial nesta região tem como precursor o bandeirante paulista Antonio Luis de
Passos que, em 1698 recebeu da coroa portuguesa uma sesmaria de aproximadamente
oitenta léguas, localizada entre os rios Pardo e Doce (D’Ângelis, 1998 v.II
p.13). A partir de então, pessoas vindas de diferentes partes foram fixando
residência na localidade, ocupando-se com as atividades de extração mineral, de
criação de animais e de agricultura.
Segundo
a historiadora Edneila Chaves, o deslocamento de garimpeiros de áreas
diamantinas contribuiu também para ampliar o povoamento de Rio Pardo. Esses
sofriam perseguições e, na tentativa de fuga da fiscalização pela Coroa
Portuguesa, foram encontrando novas áreas para mineração. Outros vieram a se
fixar como agricultores e criadores, atendendo a demanda por alimentos nas
áreas de mineração da capitania. No inicio do século XIX, Rio Pardo já era um
povoado que contava com seis mil habitantes, e que viviam principalmente da
criação de gado, da plantação de algodão, arroz, mandioca e milho (Chaves,
2007).
Inicialmente
Rio Pardo fazia parte de Minas Novas, sendo que em 10 de maio de 1757, D. João
V desmembrou o arraial de Rio Pardo de Minas da Vila Jacobina, para anexá-lo à
comarca de Serro Frio e ao governo de Minas Gerais. Em 1831, o município de Rio
Pardo de Minas foi criado recobrindo o que hoje é identificada como a região do
Alto Rio Pardo. Assim, nessa região administrativa de Minas Gerais, o município
de Rio Pardo de Minas é o mais antigo, o maior em extensão, sendo atualmente um
dos grandes produtores de carvão em função do grande estímulo governamental
para o plantio da monocultura do eucalipto. Atualmente, após uma série de
subdivisões municipais, conta com uma área de 3.129 km2 e administrativamente
é dividido em dois distritos, o de Rio Pardo de Minas e o de Serra Nova. Segundo
dados da fundação João Pinheiro, em 2000, a população total do município era de
27.237 habitantes, sendo 61% – 16.742 pessoas – residentes na zona rural (BRITO,
2006).
De
acordo com dados da FUNASA, Rio Pardo de Minas conta com 5.529 famílias
habitando a zona rural. Há uma característica regional norte - mineira
vinculada à população, ou seja, a população rural é maior que a urbana. Somente
nos municípios de Salinas e Taiobeiras, da região do Alto Rio Pardo, tem
população urbana maior que a rural (BRITO, 2006).
Embora
sendo um dos municípios que mais produz carvão no estado de Minas gerais (85.970
toneladas de carvão por ano, segundo o IBGE), não apresenta boas condições
socioeconômicas, principalmente na zona rural. Isabel Brito, analisando esse
contexto, afirma que o processo de expansão do capital alcançou o norte de
Minas na segunda metade do século XX e não abriu mão do objeto essencial para
instalação efetiva da lógica do capital, o domínio pelo capitalista dos fatores
de produção. Ela cita a análise de Marx sobre este contexto do avanço da
propriedade privada capitalista que, no caso do Norte de Minas, avançou sobre
as comunidades que ali viviam:
A
expropriação da massa do povo e de sua base fundiária constitui a base do modo
de produção capitalista (...). O segredo descoberto no novo mundo pela economia
do velho mundo e proclamando bem alto: o modo capitalista de produção e
acumulação e, portanto, a propriedade privada capitalista exige o aniquilamento
da propriedade privada baseada no trabalho próprio, isto é, a expropriação do
trabalhador (BRITO, 2006 citando Marx, capítulo XXV).
As
políticas que foram implantadas nesta região orientaram para a produção de um
determinado bem, essencialmente voltando ao mercado, num processo de
transformação que levaria, entre outras coisas, a expulsão das populações do
campo e o aparecimento do trabalho assalariado. Tudo isso foi financiado pelo
Governo do Estado que viabilizou a instalação dos empreendimentos capitalistas
que determinaram a alteração econômica da região e definiu um novo papel no
circuito nacional e internacional.
Por outro lado, conforme relata
Brito, inicialmente com a comunidade de Vereda Funda e hoje em diferentes
estágios em aproximadamente 20 comunidades da região, iniciou-se, a partir de
2003, um movimento das comunidades que se autointitulam como geraizeiras, um
exemplo do que poderia ser uma reforma
agrária, que se pauta pela justiça ambiental e a diversidade de saberes que
compõem o mundo. (BRITO, 2011).
Segundo a autora, nessa região
ocorre uma luta em que as comunidades evocam o vivido por esses grupos de
famílias, sua história, identidade e as novas aprendizagens formuladas e
reformuladas na luta pela terra, onde outros valores são levados em
consideração. Não é uma ação espontânea, mas pensada, calculada e articulada
que questiona a proposta de expansão das monoculturas para o Cerrado, de concentração
de terras e de degradação socioambiental (BRITO, 2011).
Assim
sendo, nesse recorte espacial e temporal busco refletir a região do Alto Rio
Pardo como protagonista de uma autonomia socioeconômica, estabelecida ainda
durante o período colonial com a região das minas. Região que era intercâmbio de pessoas,
mercadorias e costumes e se tornou uma área de intensa circulação comercial. Após
o declínio da mineração, a expansão da cultura algodoeira nas áreas de caatinga
passou a atender a demanda do desenvolvimento fabril, inicialmente pela
Inglaterra (Séc. XIX), posteriormente pela indústria têxtil brasileira (Séc.
XX). Essas dinâmicas de produção foram moldando as relações e o perfil das
pessoas do lugar. O campesinato, nessa região, possuía terra mesmo que menos fértil
do que da caatinga, mas contava com abundância de água, terras úmidas
abastecidas pelas chuvas periódicas. A relação do camponês com o espaço em que
vivia era de garantir o autossustento, utilizando-se dos vários espaços e
paisagens para atender as suas necessidades desenvolvendo várias atividades
agrícolas, extrativistas, criação de pequenos animais e pecuária, além da
comercialização de alguns gêneros para aquisição de ferramentas e artigos
escassos no lugar.
Estudos
apontam que a noção de propriedade baseava-se na necessidade das pessoas e na
característica natural do ambiente. Brito, analisando a Comunidade de Vereda
Funda, em Rio Pardo de Minas, afirma que as pessoas do lugar desenvolveram o
conhecimento do potencial de cada ambiente, do espaço que ocupavam e da relação
entre esses ambientes para viabilizar o modo de vida cujas necessidades básicas
eram água, terra para o cultivo das roças, pomar e moradia, solta para a
criação do gado com o extrativismo da
lenha, madeira e frutas nativas. Os recursos necessários para garantir as
necessidades básicas eram acessíveis a todos os membros, tendo usos que eram de
domínio familiar, outros de domínio coletivo, sempre no intuito de atender as
necessidades das famílias. Parte da
produção era beneficiada,a produção da farinha era a atividade mais tradicional
da comunidade. As casas de farinha utilizaram da roda d’àgua para movimentarem
as engenhocas que beneficiavam a mandioca, a cana de açúcar e o café. Parte da produção
de rapadura, farinha e café da comunidade era transportada por tropas e
comercializada nos municípios de Serranópolis, Porteirinha, Monte Azul e, até
mesmo, em Montes Claros (BRITO, 2006).
Isabel
Brito analisa o modo de vida das famílias nessa comunidade. Segundo a autora, a família consistia numa unidade produtiva que
se relacionava dinamicamente com outras famílias, os laços eram muito fortes e
explícitos assim como os laços de solidariedade e parentesco. A atividade
pastoril também foi muito forte na comunidade e moldou costumes e
tradições. Eram comuns os passeios aos
domingos na casa das famílias, onde se rezava, cantava, dançavam, jogam versos
etc. Também era muito comum a prática de mutirões para limpa da roça, colheita,
construções de casas, capelas, etc. E nas festas religiosas, barraquinhas e leilões
(BRITO, 2006). Essas dinâmicas de reciprocidade relatadas pela autora, representam
um conjunto de usos e costumes que contribuíam para o sentimento de pertença, de
segurança que a vida em comunidade traz, e nos fazem lembrar as descrições de Thompson
sobre os usos e costumes da plebe na Inglaterra do Séc. XVIII (THOMPSON, 1998).
A
partir da intervenção do estado, com a política de expansão da fronteira
agrícola, no município ocorreu toda uma alteração nos usos e costumes, descritos.
O que tinha força de Lei pelo costume ao longo de gerações, descritos acima,
foram significativamente alterados, comprometendo o modo de vida da comunidade.
A partir da entrada da monocultura do eucalipto, a produção fica comprometida. Então,
muito jovens, pais de famílias recém-constituídas, são obrigados a saírem para
trabalhar fora, a procura de trabalho, dispersam-se do convívio familiar e se submetem
à lógica do trabalho assalariado, seja nas empresas de eucalipto ou indo
trabalhar em outras regiões, como Sul de Minas ou de São Paulo. Segundo relatos,
quando retornam trazem costumes muito diferentes dos hábitos tradicionais. Nisso
verifica-se a vulnerabilidade da comunidade, que passa a contar com novos
hábitos e comportamentos estranhos às pessoas do lugar, comprometendo as
práticas e vivências de outrora. As empresas tomaram áreas que eram para solta
do gado, coleta de frutas, madeira e lenha. Essas áreas foram ocupadas pelo
plantio de monoculturas, atualizando o sistema de plantation em pleno século
XX, deixando famílias inteiras espremidas nas beiras dos córregos. Alterações
ocorreram também na periodicidade das festas, que passaram a aguardar a volta
dos parentes das colheitas do café, ou do corte de cana.
A
dinâmica capitalista desarranjou uma dinâmica tradicional que ali vigorava,
aquilo que tinha força de lei pelo costume, foi desconsiderado em nome da
modernização e do progresso que sustentava o avanço do capitalismo nesta região.
Por outro lado, possibilitou também o
amadurecimento político daqueles grupos. A partir da exploração da empresa, da
degradação dos recursos de cuja vida eles dependiam, o povo foi se
autoafirmando enquanto donos daquelas terras, percebendo que aquele jeito de
trabalhar, viver e de se relacionar com a natureza que haviam mantido até a
chegada da empresa era o modo de vida deles. Eles não sabiam viver de outra
maneira, o que sabiam foi passado de geração para geração, muitas vezes através
da oralidade, das histórias dos mais velhos, através de cantigas, receitas
culinárias, do uso dos remédios, na prática de benzeção, nas brincadeiras, nas
rezas e em formas de sociabilidade. E não estavam dispostos a abrir mão desse jeito
de viver por nenhuma razão. Ponto que desejo
evidenciar neste estudo: como é possível uma comunidade sofrer impactos sociais
e ambientais tão severos e, mesmo assim, não ceder, não “abaixar a cabeça”?
Como ainda mantêm vivas as práticas e valores que são a base de seus modos de vidas em meio a todo aquela
desorganização provocada pela chegada das reflorestadoras? O que os
sustentaram? Que pilar é esse que a cartilha do Capital não deu conta de
sobrepor, muito pelo contrário, reforçou e reafirmou sentimentos de pertencimento
e identificação de grupos? Tais questionamentos nos remetem a Thompson em
Costumes e usos comuns, em que mostra como ocorreu o enfrentamento entre a
economia de mercado, que floresceu com o avanço das relações sociais capitalistas,
e a economia moral da plebe, baseada nos costumes. De um lado colocavam-se os
arautos da economia liberal, segundo a qual tudo deveria ser devotado ao lucro,
do outro colocava-se a plebe, cujo modo de vida estava calcado na observância
de certos costumes e de certa moralidade, que se chocam (HOMENSNOTEMPO, 2011).
Considerações finais
Atualmente,
na região do Alto Rio Pardo, diversas iniciativas de enfrentamento ao avanço do
capitalismo no campo têm como pano de fundo estratégias que reafirmam saberes e
vivências. Pergunto-me se essas iniciativas têm relação com os estudos de
Thompson sobre Costumes em Comuns onde ele aponta, na Inglaterra do Século
XVIII, como “a tenacidade com que sujeitos
impertinentes e despeitados obstruíam os cercamentos por acordo, resistindo até
o fim em favor da antiga economia baseada nos costumes” (THOMPSON, 1998
p.95).
Vimos
que na região do Alto Rio Pardo ocorreu um impacto significativo nas relações
de trabalho, onde os agricultores tradicionais se viram obrigados a se tornarem
empregados de empresas reflorestadoras, em fazendas de cana-de-açúcar ou de café,
diante das escassas possibilidades de sustento das suas famílias. Isso alterou
muito o quadro social, pois onde antes não havia empregado fichado em firma,
agora havia empregado fichado, porém alijado de seus direitos territoriais.
Assim entra em cena uma organização sindical que passa apoiar a luta pelos
direitos das famílias a ela associadas.
Vimos
também que, entre as consequências dessas transformações, ocorreram diversas
tensões em função do esfacelamento das famílias, comprometendo tanto a
identidade como as relações históricas de reciprocidade. Por outro lado, a
resistência aí verificada, o enfrentamento realizado de forma organizada e
pensada pelas famílias e suas organizações têm relação com os estudos de
Thompson, que se volta para séc. XVIII, para mostrar como ocorreu o enfrentamento
entre a economia de mercado que floresceu com o avanço das relações sociais
capitalistas, e a economia moral da plebe, baseada nos costumes. Tendo de um
lado os arautos da economia liberal, segundo a qual tudo deveria ser devotado
ao lucro, e do outro a plebe, cujo modo de vida estava calcado na observância
de certos costumes e de certa moralidade, que se chocam (Thompson, 1998).
Em
que medida as lutas das comunidades geraizeiras do Alto Rio Pardo e, em
particular da Comunidade de Vereda Funda no enfrentamento de poderosas empresas
ligadas ao complexo mineral siderúrgico, pode ser considerada como locus de consciência de
classe ?
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFICAS
ANDRADE,
Manuel Correia de. A terra e o homem no
Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6 ed. –
Recife: Editora Universitária da UFFPE, 1998.
BRITO,
Isabel Cristina Barbosa de. Comunidade, Território
e Complexo Florestal
Industrial: o caso de Vereda Funda,
Norte de Minas Gerais.
Dissertação de Mestrado. Montes Claros, MG:UNIMONTES / PPGDS, 2006.
BRITO,
Isabel Cristina Barbosa de. O Ecologismo
dos Gerais – in Povos e comunidades tradicionais no Brasil. Organizadores,
Dieter Gowora e outros. Montes Claros: UNIMONTES, 2011.
CHAVES,
Edneila Rodrigues. Identidades Culturais
na América Portuguesa. Associação Nacional de História – ANPUH - XXIV
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – 2007
D’ÂNGELIS,
Newton – Efemérides Riopardenses 1698 –
1972 Rio Pardo de Minas. V.I, II, III e IV. R&S Arte Gráfica, Salinas.
1998.
DAYRELL, Carlos
Alberto – Gerazeiros y Biodiversidad en
el Norte de Minas Gerais: la contribuición de la agroecologia e de la
etnoecologia en los estudios de los agroecossistema. Huelva: Universidad
Internacinal de Andalúcia, 1998. (Dissertação de Mestrado).
LUZ DE OLIVEIRA,
Claudia et alii – Economias invisíveis e
comunidades tradicionais no Norte de Minas in Povos e comunidades
tradicionais no Brasil / Org. Dieter Gawora, Maria Helena de Souza Ide, Rômulo
Solares Barbsosa. – Montes Claros: Unimontes, 2011.
NOGUEIRA,
Mônica. Povos do Cerrado:
Características Gerais e Desafios Comuns – in Povos e comunidades tradicionais
no Brasil. Organizadores, Dieter Gowora e outros. Montes Claros: UNIMONTES,
2011.
NEVES, Antonio
da Silva. Chorographia do Município de
Boa Vista do Tremendal – Estado de Minas Geraes. Belo Horizonte: Revista do
Arquivo Público Mineiro. 1908.
RASTRELO E
SIL,VA Renata – Eu vivi fazendo aquilo
que eu gosto – Proprietários rurais do distrito de Martinésia (Uberlândia –MG)
vivenciando as transformações no campo – in História e Perspectivas,
Uberlândia (41): 141-186, jul. dez. 2009.
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Cia das letras, 1998.
Acessado
na Internet: