Exmo. Governador do Estado do Rio Grande de Sul
Governador Germano Rigoto
Prezado Senhor
Acabo de receber em minha caixa de email, uma solicitação para manifestação de solidariedade às “camponesas que estariam sofrendo represálias em propósito da destruição de mudas de espécies florestais em um centro de pesquisas da Aracruz, no Rio Grande do Sul”. Por um momento me vem à mente este Estado que me recebeu em julho de 1970, 36 anos atrás, quando, com meus dezessete anos passei a morar na cidade de Porto Alegre, primeiro como bancário, posteriormente como acadêmico dos cursos de engenharia elétrica e engenharia agronômica.
O contato que tive com a Cidade, com o Estado, com as suas populações, com a AGAPAN, Augusto Carneiro, com nosso saudoso Lutzenberguer, com os amigos e parentes que ainda tenho aí, foi extremamente importante em minha formação como cidadão de um mundo que cada vez mais nos exige posicionamentos. Vivemos uma geração onde o nosso olhar não pode deixar de ver na nossa história, no nosso passado, os ensinamentos e os aprendizados que o nosso tempo nos proporciona, assumindo posicionamentos e posturas que se apresentam no dia a dia, sem deixarmos de nos responsabilizarmos com o futuro.
Há exatamente 30 anos atrás deixei Porto Alegre, me transferindo para a cidade de Viçosa em Minas Gerais onde terminei meus estudos. Naquela época, em 1976, caminhando para o final de um período totalitário, um dos motivos da mudança era o medo que se tinha de possíveis represálias da ditadura militar que ameaçavam o então jovem Carlos Dayrell porque, naquele momento de nossa história, ações em defesa do meio ambiente que envolvessem processos sociais eram tidos como manifestações perigosas para o “status quo” vigente.
Há vinte e dois anos resido e trabalho no Norte de Minas Gerais, e tive a oportunidade de conhecer in loco os resultados da região ter sido “selecionada” para a expansão das monoculturas de eucalipto e pinus, o que aconteceu em duas oportunidades: no final dos anos 1970 até final dos anos 1980 e, a partir dos anos 2000 até o presente. Em menos de 15 anos um milhão de ha. de cerrado nativo foram rapidamente transformados em plantios monoculturais de eucalipto e pinus. A dinâmica deste processo, nos primeiros anos provocou euforia e trouxe esperanças a muitos. O que mais se apregoava naquele momento era a possibilidade da oferta de empregos, era a dinamização da economia que iria beneficiar a todos. Mas que vimos foi muito diferente: assistimos um processo de devastação em grande escala contra a rica biodiversidade dos cerrados, contra a economia local que ficou totalmente destroçada e dependente de decisões que eram tomadas ao sabor dos interesses dos grandes conglomerados agroindustrais, muitos deles com sede em capitais da Europa, da América do Norte ou do Japão. Nos pequenos municípios, onde viviam milhares de famílias de camponeses, em muitos casos há duzentos, trezentos anos, as terras se concentraram ainda mais, expulsando muitas vezes comunidades inteiras, que passaram a viver encurraladas nas grotas, povoados ou nas periferias das cidades. A mecanização advinda dos processos de inovação tecnológica rapidamente tomou conta dos postos de trabalho. Primeiro pelas motos-serra que substituíram cada uma o lugar de pelo menos dez trabalhadores machadeiros. Em seguida pelas máquinas que cortam, descascam e empilham e carregam os caminhões, cada uma delas substituindo o trabalho de 80 trabalhadores por turno. Quando uma destas máquinas chega trabalha em três turnos ininterruptos. Ou seja, em poucos anos apenas uma das máquinas ocuparam o lugar de pelo menos 2.400 empregos diretos. Isto sem falar que até mesmo os serviços de viveiros de mudas, de plantios das mudas no campo também estão sendo rapidamente mecanizados.
Mas, os problemas não foram apenas estes. Um outro problema de grande magnitude também vem afetando a vida de todos nós, não apenas dos que vivem no entorno das áreas de expansão das monoculturas. É o problema relacionado com os recursos hídricos. Em todas as pequenas bacias hidrográficas onde os plantios monoculturais foram implantados observou-se um processo crescente de alteração do balanço hidrológico dos recursos hídricos superficiais e dos lençóis subterrâneos. Estudos pouco divulgados de pesquisadores idôneos demonstraram o déficit ocasionado pelo “decréscimo na recarga nas áreas de chapadas reflorestadas da ordem de 164 mm/ano a 230 mm/ano. Só para o senhor ter idéia da magnitude deste problema no Norte de Minas Gerais, no período de apenas um corte (ou seja, 7 anos em média), o comprometimento anual na recarga dos aqüíferos da região foram na ordem de 1.640.000.000 de m3 (um bilhão e seiscentos e quarenta milhões de metros cúbicos) de água.
Este volume anual significa duas vezes ao equivalente armazenado pela maior barragem da região e que foi construída pela CODEVASF na década de 1970 nas cidades de Janaúba / Porteirinha – a Barragem do Bico da Pedra que tem capacidade total de armazenamento de 750.000.000 de m3 de água (setecentos e cinqüenta milhões de metros cúbicos de água).
Senhor Governador, infelizmente os problemas não param por aí. Temos também outros que merecem uma reflexão mais acurada, como é o caso dos agrotóxicos. Anualmente toneladas de agrotóxicos são utilizadas pelas empresas reflorestadoras para controlarem a disseminação de pragas e doenças. Cupins, formigas, lagartas, doenças fúngicas, ervas consideradas invasoras são “controladas” com a aplicação de inseticidas, fungicidas, herbicidas, contaminando os solos, as águas, os trabalhadores e as populações humanas que vivem no seu entorno, além de provocarem sérios desequilíbrios nas cadeias ecológicas.
Por tudo isso, precisamos procurar entender o ato das mulheres da Via Campesina quando elas são obrigadas a realizar “gestos extremos a fim de chamar a atenção da sociedade para o drama que vivem há muito tempo”[3] de milhares de comunidades camponesas do Norte de Minas, do Vale do Jequitinhonha, do Espírito Santo, do Sul da Bahia. Sociedades nativas que tiveram seus direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais negados e que encetam lutas de resistência pela visibilização no sentido de serem reconhecidas como cidadãos e cidadãs brasileiros e também de verem respeitado o direito ao desenvolvimento de suas sociedades. Comunidades que convivem um drama de extrema violência, mas que aparece de forma silenciosa, quase invisível, onde a grande mídia, salvo raras exceções, pouco destaque lhes são dados. Temos como exemplos muito recentes os ataques ocorridos nas Aldeias Tupiniquim e Guarani pela Aracruz Celulose, a degradação ambiental, ocupação de terras públicas e encurralamento das comunidades geraizeiras do Norte de Minas provocadas por empresas como a Gerdau, Italmagnésio, VM, Plantar, e dezenas de outras empresas do setor siderúrgico e de celulose, todos eles com a aquiescência do Governo do Estado de Minas Gerais e estimulados pela política floresta
l do governo federal.
Este ato das Mulheres da Via Campesina Senhor Governador, ocorrido no mesmo Estado onde 31 anos atrás outro ato de três estudantes em cima de uma árvore chamou a atenção da sociedade para a importância de dar relevância para um crescente movimento ambientalista, deveria ser entendido por todos nós como um alerta sobre os riscos de uma opção desenvolvimentista que vêm comprometendo a possibilidade de um futuro de todos nós brasileiros, de todos nós cidadãos e viventes do mundo. Pedimos que suspenda de imediato a ação da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, comandada pelo delegado Rudimar de Freitas Rosales, contra estas mulheres e suas organizações sociais.
Assim, ao contrário das represálias às Mulheres da Via Campesina, devemos sim, prestarmos a elas, a todas elas, as nossas homenagens por este ato de bravura, de coragem, de cidadania mundial que se equiparam às grandes lutas pacifistas e ou de desobediência civil como as encetadas por Gandhi, Martin Luther King Jr, Nelson Mandela, Betinho Duarte, Chico Mendes, Irmã Dorothy, pelas Mulheres da Praça de Maio, pelo MST, CPT e outros movimentos de luta pela terra e pela reapropriação de territórios.
Montes Claros, 27 de março de 2006
Carlos Alberto Dayrell
Engenheiro agrônomo, ambientalista e pesquisador do CAA NM.
[1] Título concedido em 1998 pela Câmara Municipal de Porto Alegre
[2] “Ataque aos cerrados: a saga dos Geraizeiros que insistem em defender o seu lugar” - João Silveira D´Angelis Filho e Carlos Alberto Dayrell – CAA NM, 2006
[3] Trecho da carta de Plínio de Arruda Sampaio ao senador Eduardo Suplicy – 24 de março de 2006.
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