O Rio São Francisco entrou na pauta nacional. O rio que já foi da unidade nacional, depois de décadas de esquecimento, virou tema de debate e de proposições. De um lado, os que querem as águas para seus negócios econômicos de grande monta, os que vendem a ilusão de que suas águas podem aplacar a sede dos Nordestinos. De outro, os que defendem a revitalização do rio, cujas águas demonstram que está “enfermo”, precisando de um “gole de água” como bem disse o atual bispo de Barra, D. Frei Luiz Cappio.
O Rio São Francisco entrou na pauta; pescadores de fim de semana descem e sobem em suas lanchas potentes, com seus guarda-sois coloridos; o Vapor Benjamim Guimarães se enche de turistas descendo do porto de Pirapora até a Barra do Guaicui, vinte quilômetros de um passeio cujo apito reverbera saudades por mais de mil quilômetros abaixo, lembrando tempos esquecidos na memória de maquinistas, do povo da marinha e do povo ribeirinho que clama ser ouvido.
Escondida do lusco-fusco da mídia, dos debates sobre o destino do rio, dos vapores, das lanchas potentes, não se vê que uma mulher, pequena e magra, ainda antes do sol raiar quase que diariamente desce até o porto da cidade de Manga, norte de Minas Gerais. Ali, escondendo do sol que breve virá forte, na sombra de um chapéu de palha de abas largas, esta mulher pega uma canoa de madeira roliça, equipada com um pequeno motor de popa, e sai para o seu trabalho diário. Passa pela Ilha do Pau de Légua, em seguida ou outro dia na Ilha da Ressaca, na Ilha do Pau Preto, da Ingazeira ou no Quilombo da Lapinha.
Em um trabalho tão miúdo, de conversas nas cozinhas cujo fogão de lenha está assentado em um jirau sustentado por quatro paus roliços, em casas também de pau a pique, esta pequena mulher, aqui e acolá vai conversando, ouvindo, sugerindo, fazendo reuniões com pequenos grupos, com grupos maiores, nas escolas, nas sombras de umbuzeiros ou dos joazeiros, estimulando as mulheres e os homens em suas organizações religiosas, comunitárias, a buscarem e encontrarem esperanças de dias melhores: de um rio cujas lagrimas de sofrimento escorrem nos rostos destes homens e mulheres que, como o rio, sentem o entupimento de areia, a contaminação de suas águas, o secamento de suas lagoas criadeiras. E a esperança vem quando suas danças de batuque, que até outro dia ainda aconteciam em momentos de muita intimidade, hoje podem sair e são chamados para se apresentarem com suas vestes coloridas em palcos de escolas ou até mesmo de cidades importantes como Montes Claros, Belo Horizonte ou na capital federal. A esperança aumenta quando organizações, estudantes e professores de escolas federais chegam para ouvi-los o que tem a dizer sobre seus modos de vida, como labutam as terras crescentes, suas pescadas que, ao contrário dos pescadores de fora, só acontecem no aconchego da noite, de suas danças e crenças. Suas esperanças aumentam quando são elogiados pela sua culinária tradicional, ou o tradicional artesanato de madeiras e sementes passam a ser requisitados pelos que vem de fora. Suas esperanças aumentam quando puderam dizer, pela primeira vez, para autoridades estaduais e federais, deputados e senadores, quem são, como vivem e o que querem. E então se apresentam como Vazanteiros, um povo ilustre, mas desconhecido das autoridades, um povo que foi e continua sendo portador de um legado de referencia na formação da sociedade brasileira. Se sentem importantes ao descobrir que na constituição brasileira eles foram sutilmente lembrados em seus artigos 215 e 216. E agora querem ser ouvidos. Como na carta que enviaram ao Presidente Lula, em 27 de maio de 2006: “O rio São Francisco não pode ser recuperado, revitalizado, como vocês agora estão dizendo, sem nós, o povo Vazanteiro. A história conta, é nosso dever, nosso direito, e obrigação dos senhores”[1].
Não se pode falar dos Vazanteiros sem nos lembrarmos do trabalho incansável desta mulher miúda, magra, que deixou a cidade de Teófilo Ottoni há quase trinta anos atrás e veio para o Norte de Minas. Desta mulher que se chama Zilah de Matos e cuja vida de mistura com a vida dos camponeses do sertão de Minas Gerais.
O Rio São Francisco entrou na pauta; pescadores de fim de semana descem e sobem em suas lanchas potentes, com seus guarda-sois coloridos; o Vapor Benjamim Guimarães se enche de turistas descendo do porto de Pirapora até a Barra do Guaicui, vinte quilômetros de um passeio cujo apito reverbera saudades por mais de mil quilômetros abaixo, lembrando tempos esquecidos na memória de maquinistas, do povo da marinha e do povo ribeirinho que clama ser ouvido.
Escondida do lusco-fusco da mídia, dos debates sobre o destino do rio, dos vapores, das lanchas potentes, não se vê que uma mulher, pequena e magra, ainda antes do sol raiar quase que diariamente desce até o porto da cidade de Manga, norte de Minas Gerais. Ali, escondendo do sol que breve virá forte, na sombra de um chapéu de palha de abas largas, esta mulher pega uma canoa de madeira roliça, equipada com um pequeno motor de popa, e sai para o seu trabalho diário. Passa pela Ilha do Pau de Légua, em seguida ou outro dia na Ilha da Ressaca, na Ilha do Pau Preto, da Ingazeira ou no Quilombo da Lapinha.
Em um trabalho tão miúdo, de conversas nas cozinhas cujo fogão de lenha está assentado em um jirau sustentado por quatro paus roliços, em casas também de pau a pique, esta pequena mulher, aqui e acolá vai conversando, ouvindo, sugerindo, fazendo reuniões com pequenos grupos, com grupos maiores, nas escolas, nas sombras de umbuzeiros ou dos joazeiros, estimulando as mulheres e os homens em suas organizações religiosas, comunitárias, a buscarem e encontrarem esperanças de dias melhores: de um rio cujas lagrimas de sofrimento escorrem nos rostos destes homens e mulheres que, como o rio, sentem o entupimento de areia, a contaminação de suas águas, o secamento de suas lagoas criadeiras. E a esperança vem quando suas danças de batuque, que até outro dia ainda aconteciam em momentos de muita intimidade, hoje podem sair e são chamados para se apresentarem com suas vestes coloridas em palcos de escolas ou até mesmo de cidades importantes como Montes Claros, Belo Horizonte ou na capital federal. A esperança aumenta quando organizações, estudantes e professores de escolas federais chegam para ouvi-los o que tem a dizer sobre seus modos de vida, como labutam as terras crescentes, suas pescadas que, ao contrário dos pescadores de fora, só acontecem no aconchego da noite, de suas danças e crenças. Suas esperanças aumentam quando são elogiados pela sua culinária tradicional, ou o tradicional artesanato de madeiras e sementes passam a ser requisitados pelos que vem de fora. Suas esperanças aumentam quando puderam dizer, pela primeira vez, para autoridades estaduais e federais, deputados e senadores, quem são, como vivem e o que querem. E então se apresentam como Vazanteiros, um povo ilustre, mas desconhecido das autoridades, um povo que foi e continua sendo portador de um legado de referencia na formação da sociedade brasileira. Se sentem importantes ao descobrir que na constituição brasileira eles foram sutilmente lembrados em seus artigos 215 e 216. E agora querem ser ouvidos. Como na carta que enviaram ao Presidente Lula, em 27 de maio de 2006: “O rio São Francisco não pode ser recuperado, revitalizado, como vocês agora estão dizendo, sem nós, o povo Vazanteiro. A história conta, é nosso dever, nosso direito, e obrigação dos senhores”[1].
Não se pode falar dos Vazanteiros sem nos lembrarmos do trabalho incansável desta mulher miúda, magra, que deixou a cidade de Teófilo Ottoni há quase trinta anos atrás e veio para o Norte de Minas. Desta mulher que se chama Zilah de Matos e cuja vida de mistura com a vida dos camponeses do sertão de Minas Gerais.
Carlos Alberto Dayrell, técnico do CAA NM relata o seu primeiro contato com Zilah de Matos:
"Lembro-me muito bem de como a conheci. Foi em 1985. Trabalhava como técnico do governo do estado de Minas Gerais em um programa de desenvolvimento rural na cidade de Jequitaí, Norte de Minas. Um grupo de lavradores que na época da seca trabalhavam na exploração do quartzo, produto utilizado pelas indústrias siderúrgicas na fabricação de ligas de ferro-silício, este grupo pediu que fizéssemos uma reunião na região onde trabalhavam, o alto de uma serra que ficava a cerca de quinze km da cidade. Pediram-me que no dia da reunião eu levasse de carro uma educadora da FETAEMG que deveria participar da reunião. Esperei pela mulher até a hora indicada, ela não aparecendo, resolvi subir a serra para a reunião que estava marcada para as 9 horas da manhã. Ao chegar, expliquei que a mulher não havia aparecido e resolvi subir a serra para não atrasar a reunião. Notei que eles ficaram meio desapontados, mas prosseguimos com a reunião. Ao aproximar de meio dia, já no finalzinho, esta mulher chega até onde estávamos reunidos, suada, ainda ofegando. Tinha subido a pé os 15 km serra acima. Os semblantes de todos mudaram perceptivelmente. A alegria tomou conta do que seria o final da reunião. Pois ela continuou, após um lanche compartilhado pelos que tinham algum alimento em seus barracos improvisados. Foi assim que conheci Zilah de Matos, de quem acabei me tornando um amigo, um aprendiz, pois com ela tive a oportunidade de encontrar por muitas outras vezes, em situações semelhantes."
Neste caso dos garimpeiros da Serra do Capador, graças a sua persistência, os mesmos conseguiram negociar com a empresa siderúrgica entregar diretamente o produto de seu trabalho sem intermediários. E em uma negociação envolvendo as autoridades, 51 famílias receberam o título de 250 hectares de terra para continuarem cultivando seus terrenos.
Alguns anos após, ela já desenvolvia um trabalho de acompanhamento aos sindicatos dos trabalhadores rurais de Porteirinha e Riacho dos Machados como agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra, onde milita até hoje. Em Riacho dos Machados, assessorou uma comunidade tradicional de geraizeiros que praticamente estavam com um pé fora de suas terras frente à pressão que enfrentavam para saírem de suas terras. De um lado, uma empresa reflorestadora que estava plantando eucalipto desmatando os cerrados e as veredas que lhes forneciam água e alimentos. De outra, a omissão do poder público municipal e do INCRA que chamado para negociar emitiu um laudo desaprovando a qualidade das terras para implantação de um assentamento de reforma agrária. Foi quando a reencontramos, agora trabalhando pelo Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas. Ela solicitou que o CAA elaborasse um laudo avaliando a viabilidade da implantação de um assentamento em parte da fazenda requerida. Em função de seu trabalho, pudemos avançar na compreensão da lógica produtiva desta comunidade geraizeira. Zilah de Mato deu uma grande contribuição na intermediação deste conflito envolvendo o INCRA e a empresa reflorestadora, levando a uma negociação que viabilizou a implantação de um assentamento de reforma agrária. Hoje, esta comunidade é uma referência estadual e mesmo nacional como um assentamento agroextrativista em áreas de cerrado, conhecida como Assentamento Tapera. Neste mesmo período, a partir de sua assessoria ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha, criou as bases para esta organização tornar-se uma referência como organização de agricultores familiares na divulgação da agroecologia.
Em 1998 aceitou outro desafio ao mudar para a cidade de Manga, às margens do rio São Francisco e na divisa com o estado da Bahia. Esta era uma região que nas décadas anteriores sofreu uma grande transformação em virtude dos grandes projetos agropecuários e de irrigação que lá se instalaram com pesados subsídios governamentais. Com uma história de mais de 300 anos de ocupação por comunidades negras, indígenas (Povo Xakriabá), ou nordestinas que aí chegavam como refugiados da seca, o cercamento das fazendas e a degradação ambiental foram inviabilizando o modo de vida destas populações nativas. Com um trabalho miúdo, imperceptível até, passou a levar esperanças a comunidades de homens e mulheres que viviam destituídas de seus direitos básicos de acesso à água, à terra, à educação.
"Lembro-me muito bem de como a conheci. Foi em 1985. Trabalhava como técnico do governo do estado de Minas Gerais em um programa de desenvolvimento rural na cidade de Jequitaí, Norte de Minas. Um grupo de lavradores que na época da seca trabalhavam na exploração do quartzo, produto utilizado pelas indústrias siderúrgicas na fabricação de ligas de ferro-silício, este grupo pediu que fizéssemos uma reunião na região onde trabalhavam, o alto de uma serra que ficava a cerca de quinze km da cidade. Pediram-me que no dia da reunião eu levasse de carro uma educadora da FETAEMG que deveria participar da reunião. Esperei pela mulher até a hora indicada, ela não aparecendo, resolvi subir a serra para a reunião que estava marcada para as 9 horas da manhã. Ao chegar, expliquei que a mulher não havia aparecido e resolvi subir a serra para não atrasar a reunião. Notei que eles ficaram meio desapontados, mas prosseguimos com a reunião. Ao aproximar de meio dia, já no finalzinho, esta mulher chega até onde estávamos reunidos, suada, ainda ofegando. Tinha subido a pé os 15 km serra acima. Os semblantes de todos mudaram perceptivelmente. A alegria tomou conta do que seria o final da reunião. Pois ela continuou, após um lanche compartilhado pelos que tinham algum alimento em seus barracos improvisados. Foi assim que conheci Zilah de Matos, de quem acabei me tornando um amigo, um aprendiz, pois com ela tive a oportunidade de encontrar por muitas outras vezes, em situações semelhantes."
Neste caso dos garimpeiros da Serra do Capador, graças a sua persistência, os mesmos conseguiram negociar com a empresa siderúrgica entregar diretamente o produto de seu trabalho sem intermediários. E em uma negociação envolvendo as autoridades, 51 famílias receberam o título de 250 hectares de terra para continuarem cultivando seus terrenos.
Alguns anos após, ela já desenvolvia um trabalho de acompanhamento aos sindicatos dos trabalhadores rurais de Porteirinha e Riacho dos Machados como agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra, onde milita até hoje. Em Riacho dos Machados, assessorou uma comunidade tradicional de geraizeiros que praticamente estavam com um pé fora de suas terras frente à pressão que enfrentavam para saírem de suas terras. De um lado, uma empresa reflorestadora que estava plantando eucalipto desmatando os cerrados e as veredas que lhes forneciam água e alimentos. De outra, a omissão do poder público municipal e do INCRA que chamado para negociar emitiu um laudo desaprovando a qualidade das terras para implantação de um assentamento de reforma agrária. Foi quando a reencontramos, agora trabalhando pelo Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas. Ela solicitou que o CAA elaborasse um laudo avaliando a viabilidade da implantação de um assentamento em parte da fazenda requerida. Em função de seu trabalho, pudemos avançar na compreensão da lógica produtiva desta comunidade geraizeira. Zilah de Mato deu uma grande contribuição na intermediação deste conflito envolvendo o INCRA e a empresa reflorestadora, levando a uma negociação que viabilizou a implantação de um assentamento de reforma agrária. Hoje, esta comunidade é uma referência estadual e mesmo nacional como um assentamento agroextrativista em áreas de cerrado, conhecida como Assentamento Tapera. Neste mesmo período, a partir de sua assessoria ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha, criou as bases para esta organização tornar-se uma referência como organização de agricultores familiares na divulgação da agroecologia.
Em 1998 aceitou outro desafio ao mudar para a cidade de Manga, às margens do rio São Francisco e na divisa com o estado da Bahia. Esta era uma região que nas décadas anteriores sofreu uma grande transformação em virtude dos grandes projetos agropecuários e de irrigação que lá se instalaram com pesados subsídios governamentais. Com uma história de mais de 300 anos de ocupação por comunidades negras, indígenas (Povo Xakriabá), ou nordestinas que aí chegavam como refugiados da seca, o cercamento das fazendas e a degradação ambiental foram inviabilizando o modo de vida destas populações nativas. Com um trabalho miúdo, imperceptível até, passou a levar esperanças a comunidades de homens e mulheres que viviam destituídas de seus direitos básicos de acesso à água, à terra, à educação.
Trabalhando em pequenos grupos, envolvendo mulheres, crianças e jovens, viabilizou o acesso à água de comunidades inteiras que tinham caminhar quilômetros em busca deste liquido vital. Também em pequenos grupos, pequenas iniciativas produtivas como apicultura, criação de animais, roças, artesanato, hortas e farmacinhas comunitárias, passaram a gerar alimentos, remédios e excedentes na renda familiar. Mas, e principalmente, seu trabalho junto às comunidades vazanteiras, até então completamente desconhecidas pelos poderes públicos, vem criando as condições para que eles comecem a reivindicar suas políticas especificas. Entre estas, a pela revitalização do Rio São Francisco do qual são profundamente conhecedores, rio, do qual, as suas vidas dependem.
Os sertanejos que cruzaram pelo caminho desta mulher miúda reconhecem o seu mérito, com ela compartilham esperanças de dias melhores para todos. O reconhecimento do mérito do trabalho desta cidadã brasileira merece extrapolar os limites do sertão. Vai contribuir não apenas com a sua pessoa, muito valiosa que é, mas, principalmente, com o desenvolvimento de seu trabalho junto a povos e comunidades tradicionais. Um trabalho que não aparece em relatórios, em publicações, em livros ou revistas, mas que se constitui um germe de esperança para um Brasil que reconhece e respeita o legado dos povos que forjaram a Nação Brasileira.
Montes Claros, agosto de 2008
Foto 1 - Arquivo CAA - Foto 2 Elisa Cotta
[1] Conforme: Carta manifesto das mulheres e homens vazanteiros – Povos das Águas e Terras Crescentes do São Francisco. Maio de 2006.
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