sexta-feira, 7 de novembro de 2008

ASSIM É A GRANDE VIDA


Saindo de Buritizeiro por uma estrada tortuosa que passa pelo rio das Pedras, a gente encontra um platô onde os pequizeiros são abundantes no meio das pastagens. O terreno é arenoso.

A estrada sinuosa deixa o platô e sobe dois patamares antes de chegar numa imensa chapada. Predomina uma campina e diversas veredas. Buritizais de todo tamanho drenam os tabuleiros. Os cerrados aqui tem arvores de todo tipo, muitas oferecem frutos saborosos como os pequizeiros, cagaiteiras, mangabeiras, e outras mais como o rufão, a fruta de leite ...

Esta chapada faz contato com uma imensa serra, qual uma costela saliente num meio de um planalto sem fim: é a Serra dos Alemães. Tem esse nome, segundo os antigos, por aqui ter passado, ainda no século XVIII, um alemão que procurava minerais ou pedras preciosas. Dele não se teve mais notícias mas ficou a serra na lembrança dos seus moradores.

Outro dia percorri este caminho. Fui parar na casa de João Moló, um agricultor com seus mais de 80 anos, mora, já não se sabe há quanto tempo, nessas veredas da margens esquerda do rio São Francisco. Seu rosto moreno, cabelos escorridos, olhos pequenos, maçã do rosto saliente, não mostra a idade que tem. Magro mas empertigado, caminha com desenvoltura pelo quintal, pela casa cujas paredes são de adobe e uma cobertura bem trançada de palhas de buriti. Lá dentro pouca mobília, o fogão em brasa esquenta uma chaleira de café.

Conheci João Moló, anos atras, numa luta dos moradores da Vereda do Jatobá para não serem despejados pelo que se dizia ser o novo proprietário destas chapadas e tabuleiros, uma história que se repete há mais de três séculos. Muitos dos moradores se foram, outros voltaram anos mais tarde, outros tantos resistiram – este foi o caso de João Moló.

Sentei para conversar com ele, uma conversa de fim de tarde, sentando num banquinho feito de talisca dos pecíolos das folhas de buriti. João Moló era de boa conversa. Da última vez que havia me despedido dele, me cochichou no ouvido: tenho um assunto com você, não é para agora, venha aqui no findar do mês de outubro. Já tinha me esquecido. No entanto, quinze dias atras o Dionísio me ligou pedindo para fazer um estudo lá nas Veredas do Jatobá. O sindicato tinha que apresentar uma proposta para o IBAMA parar de incomodar os moradores da vereda.

Pois coincidiu que era o fim de outubro. Já havia feito o que tinha para fazer. Cheguei chamando-o de longe para dar tempo do João sossegar os cachorros, desses que você não dá muito por eles, magrinhos, esquivos, mas valentes o suficiente para colocar qualquer cão de raça no bolso. Tinha uma fêmea toda especial, duas manchas pretas nos olhos: a Estelinha.

Sentei no banco que ele me ofereceu. O tempo estava bom este ano, já havia dado duas chuvas, uma parte da roça já plantada, outro tanto ainda para cultivar. Depois de algum tempo de conversa, ele chegou mais perto de mim, com sua voz meio rouca: tenho uma história para te contar. Há muito tempo que procuro a pessoa certa para ouvir o que tenho a dizer. Desde a primeira vez que te vi, senti que era para você escutar o que tenho a dizer. É uma história que não sei bem quando e como começou. Sei dela um pedaço, não sei se do começo, do meio ou do fim. Dela ouvi do meu avô, que ouviu de sua avó, e daí para traz não sei mais como foi passada.

Há muitos anos atrás, antes ainda do povo branco chegar, tinha uma tribo de índios que moravam nestas redondezas. Eles eram conhecidos como Abatirá – que significava grimpas levantadas. Muitos tinham os cabelos levantados, “assim ó”, me dizia o João, levantando os cabelos, negros e encorpados apesar de sua idade, da fronte para cima.

Foi uma história longa que o João Moló me contou. Dos índios, como viviam aqui antigamente, caçando veados, tatús, porcos do mato, coletando ovos de ema, passarinhos, e as roças de mandioca, milho, abóboras, até um feijão que florava muitas vezes, desses que nós comemos hoje, “será do catador?”.

E ele falava das veredas de antigamente, dessas que inda hoje se pode ver onde tem do seu povo, as campinas a se perder de vista, campinas ao longo das veredas, fazendo um contato com os tabuleiros, aquele cerradinho que encontra a vereda, feito a linha de uma cobra nos trilhos de areia. Eram já homens, mulheres, meninas, meninos, de tudo que é jeito de alegria, apesar do frio, das andanças ...

Pois teve uma menina que nasceu naquela época, era uma noite de lua cheia, o tempo era chegante com as chuvas, nasceu ali do lado onde o grande rio tem uma barranca, onde suas águas encontram as pedras e saem rolando, roncando nas cheias, ressonando na seca.

De pais andadores, esta menina nasceu quando a lua era só ela no céu, toda. Logo se viu que era de um sangue antigo, renovado. Naluna foi o seu nome. Nasceu quando era tempo de seu povo deixar as vazantes, pois logo o grande rio iria tomar conta de todas as baixadas, iria roncar nas corredeiras, era o tempo dos peixes se criarem e do seu povo, Abatirá, subir as serras: era chegado o tempo de cultivar.

Esta menina cresceu radiante, deu um novo sentido para o seu povo, nas falas, nas danças, nas festas, e ela foi mãe de muitos meninos e meninas. Com os índios era assim: uma grande família, eram todas mães, principalmente, as que sabiam preparar o seu povo quando chegava um tempo de mudança.

Naluna soube preparar o seu povo para a grande mudança. E este tempo chegou, quando um povo diferente quis tomar conta de todos os lugares. Eles chegavam querendo coisas estranhas, brigando, matando, tomar conta das pedras que brilham como a gota de uma lágrima, pelo limo da cor do sol que desce no cascalho dos rios. Foi um tempo difícil. Ela já havia ido, mas o seu povo estava preparado. E como estava!

De outra vez ela nasceu, era uma noite em que a lua só ela existia no céu, desta vez como um menino, foi um menino que cresceu vendo o povo diferente tomar conta de tudo, os seus iguais já eram bem menos, era tudo mais difícil, muitos viviam no julgo, tinham os homens cor da noite, aconteceu destes homens também se reunirem com os seus iguais, e agora, este menino feito homem, Abatirá, conseguiu reunir todos os povos, de onde vem e por onde vão as águas do grande rio, e reunidos, confederados, fizeram a grande guerra.

As águas lavaram muito sangue, levaram muito sangue, e o homem branco ficou. Os Abatirás entraram serra adentro, outras terras acharam, outras gentes, uns se dispersaram no meio deste povo novo que chegou, outros não se teve mais notícias,
mas o sangue do povo continuou, acantilado, esperando, misturando, uma vivência que só eles sabiam, das terras, dos matos, dos animais, e este foi um tempo sombrio para o seu povo, espalhados pelo sertão . . .

João Moló fez uma pausa. Sua garganta seca pedia um café, entrou no barraco, daí a pouco chegou com uma caneca, me ofereceu, tomei, e eu ficava querendo entender desta história, porque ele me chamou para contar.

O sol esmorecia na vertente da serra dos Alemães. Do outro lado, o céu ensobrecia na meio das folhagens dos buritizais, os assanhaços rebicavam as mangas que maduravam, queria perguntar para João Molló o porque da história, mas me silenciava com a grandeza deste homem antigo. João juntou uns garranchos, fez uma fogueira para espantar os mosquitinhos, sentamos de novo nos banquinhos, e ele continuou.

De outra vez, demorou muito para voltar e, quando voltou, muito tempo depois, também foi numa lua no meio de um céu cheio, escuro, era só seu brilho que se via, aí as barrancas já tinham um nome, de uma gente que carregava também o sangue dos antigos, Buritizeiro ficou sendo o nome do lugar. Nasceu desta vez com o nome de Luana, o nome que tinha o sangue dos antigos, chegou para um tempo que se avizinhava, de muitas mudanças, de muitas dúvidas, mas seria também o tempo do retorno, o tempo em que o sangue dos antigos iria se fazer presente, restaurar a possibilidade do viver, do viver de todos, numa terra em que o sagrado iria deixar de ser apenas um rito, apenas uma esperança, mas um sagrado que iria reconstituir a harmonia perdida nas brumas das fumaças que ensombreciam o céu das grandes cidades.
Quando Moló terminou de me contar a história a noite avançava gerais adentro. Fiquei muito pensativo querendo entender a sua historia.


Ele me olhou e disse apenas:

A mesma água, como o suor do nosso corpo, que desaparece com a brisa do entardecer, ela volta como chuva, umedece a terra, alimenta as plantas, restaura a força das veredas, chega ao grande rio, que se larga no grande lago, e de novo volta, no tempo certo, como chuva para carregar a bica, de onde com uma cuia você a toma, para saciar sua sede.
Assim é a grande vida !



Montes Claros, 30 de outubro de 2000

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