segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Cacunda de Librina

ou

Quando as delicadas névoas são tomadas 
pelas densas fumaças das carvoarias



Se o homem destrói ele paga por isso, 
só que nós estamos pagando por uma coisa que não foi nós o culpado direto ... esse é o famoso progresso para desenvolver a região!

Ontem o Arcilio Elias dos Santos pediu licença a seus familiares e amigos e resolveu dar um passeio no céu. Assim, de repente, sem avisar a quase ninguém, ele nos deixou.

Quem é o Arcilio Elias dos Santos? 

Se você fizer uma pesquisa no Google ou em qualquer outro sistema de pesquisa na web, de cara aparecem dois rumos de arquivos relacionados: um primeiro onde reportagens e artigos em que Arcílio é apresentado como geraizeiro e as notícias fazem relação a lutas contras as monoculturas de eucalipto, com mapas de conflitos ambientais, ou como agricultor em um livro intitulado Agricultores que cultivam árvores no Cerrado - seu nome está lá. O outro rumo de arquivos está relacionado com a justiça e neste caso aparecem os Menegheti, a Replasa, a Florestaminas, processos que estampam conflitos relacionados com grandes plantações de monoculturas de árvores nos sertões de Minas Gerais.

Mas, se você colocar no sistema de pesquisa do Google ou de outro sistema qualquer o nome Cacunda de Librina, de imediato a web mostra um sem número de sites onde um documentário é apresentado em que o geraizeiro Arcilio é um dos personagens centrais. Neste documentário ele conduz uma leitura inusitada sobre os cerrados, sobre os seus povos, suas agriculturas, debatendo inclusive com os grandes pesquisadores da ciência florestal a partir do olhar de um intelectual nativo, geraizeiro, catrumano. Com profundidade e leveza, ele vai contando histórias ao sair de sua casa desde a comunidade de Vereda Funda, município de Rio Pardo de Minas, em direção à II Conferencia Geraizeira que aconteceu em 2007 na comunidade de Vale do Guará, município de Vargem Grande do Rio Pardo. Uma caminhada em que ele vai encontrando outros iguais com preciosos relatos de um povo desconhecido para a maioria dos brasileiros. Não deixe de fazer esta pesquisa. De qualquer maneira, deixamos aqui o endereço de um dos sites:

No dia 26 de dezembro de 2014 o Brasil perdeu um ilustre personagem, mesmo que desconhecido para a maioria dos brasileiros. O geraizeiro Arcílio Elias dos Santos foi um dos percussores da revitalização das antigas chácras, um sistema de produção de café sombreado associado com ingás e também com o milho, mandioca, cana, abóboras e um sem número de outras espécies frutíferas cultivadas e nativas e que possuem uma história de pelo menos 200 anos. Eu mesmo tive a oportunidade de contar as espécies manejadas em uma destas chácras em 2007. Contei, em uma área de menos de 1 ha, um total de 33 diferentes espécies e 57 distintas variedades que eram manejadas pelas famílias geraizeiras para diversos fins[1]. Um verdadeiro tesouro genético, um banco de germoplasma vivo mantido sob o bosque dos Cerrados e formações de transição de Mata Atlântica. Estas chácras quase que foram totalmente eliminadas durante a ditadura militar brasileira, pois foi de sobrevoo que os militares e burocratas governamentais enxergaram esta região como “vazios” econômicos e também de gentes. Neste sobrevoo as Chácras foram confundidas com os Cerrados aparentemente não antropizados. A produção que daí saía não fazia parte das estatísticas do IBGE.

Em poucos anos, com financiamento e infraestruturas públicas, grandes plantações de monocultura de eucalipto passaram a dominar a paisagem dos gerais sem fim onde o nosso Arcílio vivia. Chegaram os tratores com correntões, os machados cederam lugar às motosserras, os fornos de carvão substituíram os engenhos: o Governo de Minas arrendou ou alienou estas terras a firmas de reflorestamento como se aí não vivessem ninguém. Nos anos 1970 e início dos anos 1980 não vivíamos em um Estado de Direito e as poucas vozes de resistência foram caladas por jagunços ou militares. As chapadas foram tomadas pelas grandes plantações de eucalipto, as águas secaram e o pouco que restaram foram contaminadas, as chácras foram abandonadas, encobertas pelo manto da modernidade, pelas fumaças das carvoarias e pelo trabalho escravo.

Na década de 1990 o Sr. Arcílio, ao assistir uma palestra do engenheiro florestal Álvaro Carrara do CAANM[2] sobre agroecologia e sistemas agroflorestais, foi um dos primeiros que rumou para sua chácra associando estes novos conhecimentos com o conhecimento centenário dos geraizeiros do Alto Rio Pardo. E, poucos anos após, passamos a tomar o café do seu Arcílio, torrado e empacotado na comunidade de Vereda Funda, hoje Projeto de Assentamento Agroextrativista Veredas Vivas. Foram centenas de visitantes que, a partir de sua chácra, refizeram o caminho de volta em direção a um futuro mais sustentável, aplicando os conhecimentos que ele, que sua família, que sua comunidade acabou por se tornar referência. Hoje a Embrapa Cerrados, o CENARGEN, o ICA UFMG, a UNIMONTES, entre outras instituições de ensino e pesquisa mantém ali diversos projetos de pesquisa e extensão.

O Sr. Arcílio foi um dos condutores, e o fez com muita maestria, participando da Rede Alerta contra o Deserto Verde, de visitas de intercâmbio com o Espírito Santo e Sul da Bahia, na construção da proposta de autodemarcação de território geraizeiro, na articulação com a Via Campesina para a retomada do primeiro território tradicional geraizeiro, hoje um projeto de assentamento agroextrativista que está sendo implantado pelo INCRA de Minas Gerais. Foi com a experiência de agricultor, de guardião da agrobiodiversidade e de militante que o levou assumir um cargo de diretor no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Pardo de Minas, a militar no recém criado Movimento Geraizeiro, passando então a animar muitas outras lutas, a revitalizar muitas outras chácras, a levar esperança a muitas outras comunidades encurraladas pela monocultura do eucalipto.

Estas são algumas das facetas de nosso amigo Arcilio que foi tão precocemente vitimado por uma doença que se queria livre nos sertões de Minas Gerais – a Doença de Chagas. Esta é uma herança que os serviços de saúde pública de Minas Gerais e do Brasil mantêm convenientemente no anonimato. São muitos os jovens, as jovens que por aqui morrem de repente, assim, sem tempo de avisar a ninguém. Assim foi com o nosso Arcílio. Um profundo conhecedor dos cerrados, de suas dinâmicas ecológicas e hidrológicas, um profundo conhecedor da alma humana, pois com seus casos, com sua forma de contar histórias de uma maneira aparentemente tão despretensiosa, ele navegava nas mais profundas filosofias.

Eu até acredito, eu até penso comigo, que tem institutos de pesquisas que são comprados pelos grandes plantadores, ou pelas certas entidades do governo, 
que as pesquisas deles são compradas para falar perante o povo 
que isto não traz problema de água ...


Uma homenagem da Equipe do CAA NM aos familiares e amigos de Arcílio.




Foto: João Roberto Ripper
Texto: Carlos Dayrell



[1] Veja em Monção & Dayrell  A Cachaça No Contexto Histórico, Cultural e Econômico da Região do Alto Rio Pardo – Minas Gerais. Relatório Final, Setembro de 2007.
[2] Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas.




quarta-feira, 9 de abril de 2014

Agradecimentos: mesmo que ainda sem entender!



Agradecemos a Deus, muito, mas muito mesmo, pois tivemos a honra, tivemos a alegria, tivemos a oportunidade de conviver com a senhora, D. Dochinha, por tantos anos. Por 97 anos como diria a senhora, que a cada aniversário sempre nos informava os anos que iria viver, sempre um ano há frente, a gente comentava que iríamos comemorar o centenário, a senhora sempre afirmava que sim, agora estamos aqui sem entender.

Motivos para agradecer o tempo da senhora conosco, temos demais. E quando a gente fala assim, com certeza não somos apenas nós, os filhos nascidos da união da senhora com nosso querido pai, o seu Geraldo. Os filhos, as filhas da senhora, são muitos, muitas. Os irmãos, as irmãs, muitas! Nós sentimos isso enquanto a velávamos na Capela de São Vicente de Paula, um grande conforto, cada pessoa que chegava abraçava cada um de nós, filhos ou filhas, genros ou noras, netos ou netas, bisnetos ou bisnetas, sem querer repetíamos também as palavras de sentimentos que nos era passada, sentimentos para todos nós! Éramos assim que sentíamos, todos nós que lá estávamos, muito sentidos pela partida da senhora.

Motivos para agradecer, até nestes últimos dias, nestes últimos momentos, temos demais. Primeiro o carinho e atenção que a senhora recebia dos médicos e médicas, atendentes, enfermeiras e enfermeiros. Carinho que também chegava até nós, nos confortando. Já recuperando da cirurgia, todos nós pudemos ainda senti-la, ouvi-la, sabíamos que estava nos ouvindo. Tivemos então oportunidade de falar com a senhora tantas coisas, aquelas coisinhas que às vezes a gente evitava falar, pois tivemos a oportunidade de falar, da senhora nos escutar, nos perdoar, ser perdoada, transmitir mensagens que nos chegavam de longe, de muito longe, desde Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre, desde o Sertão, de Montes Claros, Montezuma, desde a Europa, Córdoba, Espanha, Austrália e África. Muitos lugares, muita oração, muita energia que chegava até a senhora, mensagens esta que também nos confortavam!!!

Seus últimos momentos, não temos como nos esquecer, bem atendida, na calidez de uma noite que seria tão longa, no momento que seria o último suspiro, na mesma hora, estávamos todos de braços dados, na sua casa no Bairro das Palmeiras, na casa de seu filho na Quintino Bocaiúva, orando o Pai Nosso, a Ave Maria, orações que senhora nos ensinou desde criança. Abraçados estávamos todos, sabendo, como a senhora gostaria que estivéssemos mesmo, abraçados, sempre abraçados, este era um dos seus ensinamentos. Então, nesta hora de dor tão grande, foi também o conforto que tivemos para regar as lágrimas que corriam, que desciam, sem barreiras. Estávamos todos abraçados no momento em que partia!

Sem entender passamos todo o velamento. A senhora lá tão linda, de rosa, como gostava de se vestir em vida, eram tantas pessoas, não tínhamos ideia de tanta gente que a circulava, neste momento de despedida, estavam lá as mulheres do Grupo Convivência em sua roda, orando, louvando, o Folcolares com suas mensagens de esperança, a Guarda de Nossa Senhora Rainha devidamente fardada, estava lá o Congado com os tambores silenciados pela quaresma, no rito de passagem, com as rezas de entrega da senhora ao Senhor, estava lá o Padre Ercílio, que em nome dele, todos os outros cinco padres e ministros, nas orações mediadas pelo Evangelho de Cristo nosso Senhor e, em todos estes rituais, nossas almas sendo preparadas, confortadas ao saber que estava sendo bem entregue ao senhor nosso Deus.

Com certeza em meio às palmas, às orações, às canções, ao som da flauta ou da gaita ... “amigo é coisa, para se guardar”... o aplauso maior tenha sido à aquelas pessoas tão queridas e que, distantes por questões que pouco sabemos explicar, ouve o seu chamado e se irmana Naquele que é maior, naquilo que é o mais importante, no abraço que reúne as famílias em torno de Deus nosso senhor, em um conforto imensurável a marcar a partida da senhora do meio de nós!

Da mesma maneira, sem nada entendermos, no momento mais triste da despedida, no momento da saída da capela, o silêncio quebrado pela força da tempestade que lá fora caía, dos relâmpagos que repercutiam nossa dor desta partida, seria esta a última resistência de D. Doxa? Pois não é que, em seguida ao pedido silencioso à Deus, a chuva não pára naquele mesmo momento e o Senhor nos manda dois arco-íris para cortejar a saída de D. Dochinha?

Não tínhamos mais o que falar a partir deste momento, enquanto víamos no céu, entre os arco-íris, no entremeio das nuvens escuras, um clarão de luz iluminando a tarde! Era a Senhora a recebendo, e nós daqui da terra, confortados, a entregando! Foi então que, no silêncio, o corpo foi repousar ao lado de seu esposo, de sua irmã.

Agora, neste momento tão especial, nesta Igreja que a senhora nos educou, no meio de tantas pessoas queridas, desta família maior que a senhora tanto cultivou, família que hoje, desde Sete Lagoas, se espraia Minas Gerais a fora. Amigos sei que a senhora tem em Jequitaí, cidade onde nasceu, em Brejo dos Crioulos, na Tapera, em Porteirinha, em Serranópolis de Minas, em Matias Cardoso, e também em Belo Horizonte, Contagem, Juiz de Fora, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, como também aqui em Montes Claros onde no Colégio Imaculada Conceição estudou na década de 1930, onde há poucos meses atrás comemoramos, com muita alegria, o seu aniversário de 96 anos, nesta mesma igreja de São Francisco de Assis, em seguida ao Solar dos Sertões, onde foi recebida com muito carinho pelos parentes, colegas e amigos do CAA. 

Neste momento tão especial, a todas vocês, a todos vocês, expressamos os nossos agradecimentos, aos que aqui vieram, aos que aqui não puderam vir, por sermos uma só família, e à D. Dochinha, pelos ensinamentos de viver a santidade em vida.


Igreja São Francisco de Assis, Vila Ipê aos oito de abril de 2014

sexta-feira, 28 de março de 2014

. . . confabulando com o SENHOR!


O sono não vem. As seguidas lembranças de D. Dochinha me vêm à mente enquanto ela debate, confabula: estes seus momentos de vida podem ser os últimos . . . Podem?, falamos assim porque ela sempre nos surpreendeu. É impossível dizer quantas vezes. Pouco sei de suas histórias quando morava ainda em Jequitaí, em Várzea da Palma, quando mudou para Sete Lagoas. Sei que aqui, nesta cidade, que ela declarava ser a melhor do mundo, fui o primeiro a nascer, isso em 1953. Quando veio para cá, já tinha sete filhos. Fui o oitavo. Ainda nasceram outros três. Mas sei que a iniciativa de vir para Sete Lagoas teve o dedo de Dochinha, saindo de uma pequena fazenda em Várzea da Palma, onde foram morar após o incêndio de um comércio que possuíam naquela cidade.
Em Sete Lagoas, por muitas vezes surgiu à frente de diversas iniciativas, sempre ao lado do Sr. Geraldo, nosso pai. Surpreendeu-nos por diversas vezes. Recebendo jovens das cidades vizinhas que procuravam a cidade para aqui estudar. Quantos de nós não crescemos com a casa sempre cheia, nos pensionatos que complementavam a renda familiar? Assim íamos sendo educados, em meio às pessoas que agregava em sua volta. As últimas iniciativas, posso falar com muita certeza: ao ficar viúva não concordou que A NOSSA CASA fechasse as portas sem antes quitar as dívidas que se avolumaram frente aos tributos da receita, cujo pagamento foi falseado pelo então contador.
Surpreendeu novamente, quando finalmente conseguiu repassar a loja já devidamente reparada. Convidada a ir morar com as filhas, optou por um outro caminho. Pegou suas trouxas e foi para Belo Horizonte: alugou um pequeno apartamento, entrou para o folcolares, fez curso de yoga, de alimentação natural, onde também dava pensão. Quando sentiu que estava preparada, resolveu voltar para Sete Lagoas e, de forma surpreendente, dá inicio a uma oficina de Yoga direcionada a idosos. Juntamente com um restaurante natural. Nesta época não se falava de idosos, eram simplesmente velhos! ... velhas!
Refaz, em uma jornada a partir do final dos anos 1970, uma longa luta contra o preconceito vivenciado pelos idosos e idosas, a favor da terceira idade. É quando funda o Grupo Convivência. E o faz congregando idosas que viviam na periferia da cidade. Eu, que cresci vendo-a trabalhando com a infância abandonada - quantas vezes ela nos levava até aos orfanatos para brincar com os meninos neles recolhidos? quantas vezes fomos até a periferia levando presentes, cestas básicas, material de construção, para famílias que viviam na extrema pobreza? - desde longe a via ingressando em outra frente, levantando outras bandeiras, agora contra o preconceito e a exclusão dos idosos, uma luta pelo seu reconhecimento iniciada ainda no final dos anos 1970. Ela nos surpreendeu chamando a todos e todas para o cuidado com a saúde, com a alimentação, com a necessidade de se preparar para este momento precioso da vida.
Antecipando às políticas que hoje estão consagradas, deu muitas palestras, recebeu muitas visitas, participou de audiências em Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas, no Congresso Nacional. Foi à Espanha, Itália, Roma. Conheceu Chiara Lubich, de quem ficou amiga, apoiou a vinda do Focolares à Minas Gerais, à Sete Lagoas. Sei que esteve com o Papa e foi abraçada pelo Lula quando da promulgação do Estatuto do Idoso. O ministro Patrus Ananias era considerado, por ela, seu filho. Fez muitos milagres em vida, por isso, surpreendentemente não queria simplesmente partir.
Assim, sua vida foi se tornando para todos nós uma missão que pouco compreendíamos. Com sua natureza humana, suas implicâncias, seu orgulho e também sua humildade, quantas lições não tivemos com ela? Quantas vezes ela nos surpreendia ao ler a nossa alma, ao dizer o que precisávamos ouvir? E ela sempre dizia: era a voz do Espírito Santo. Eram milagres que fazia em vida. Sua amizade não tinha fronteiras. Recebia quem batesse à porta. Nós filhos, filhas, netos, netas, genros, noras, depois bisnetos, bisnetas, tataranetas e tataranetos, primos, primas, tios e tias fomos privilegiados, pois para ela a família era tudo. Família no sentido ampliado, pois sua família foi muito maior que todos nós. Muito maior. As lembranças desta maioridade são muitas, muitas. Amigos e amigas que adentraram na família, comungando de seus projetos, de seus ideais. Tantos? Cito um em nome todos outros: o José Raimundo, implantando o moderno Restaurante Vida Saudável; cito uma, em nome de tantas outras: Lani, que junto com Oli, seu marido, e com suas filhas, a acolheu como mãe, como avó. E tantos outros que para nós pode até se perderem no anonimato mas, para ela não, estão sempre presente. Uma gratidão imensa a todos!
Muitas foram as vezes em que, com o carro cheio, até mesmo em ônibus fretado, com agricultoras e agricultores, indo a Belo Horizonte ou de lá retornando (em lutas por direitos), ao passar por aqui já tarde da noite, nos recebia a todos, com lanches, com pousadas, com palavras de carinho e de apoio, em sua casa sempre aberta?  Assim, de repente, em Porteirinha, na Tapera, em Brejo dos Crioulos, eu recebia abraços, lembranças, presentes, que eram direcionados à senhora minha mãe.
O sono não vem. Enquanto isso sei que D. Dochinha está debatendo com os anjos se vai partir ou não. Não sabemos por quanto tempo este debate vai durar. Não sabemos. Com certeza ela vai confabular com o SENHOR, com a SENHORA, o momento de sua transmutação. Vai confabular com o Sr. Geraldo, com o Gegê, que a esperam. A hora da partida, só mesmo o SENHOR vai com ela acordar. Por isso, a surpresa, pois os milagres em vida foram muitos. Em vida como santa, ela construía os céus aqui na terra. Chamava de parosia, palavra que nunca tinha ouvido falar até então.
Estamos com ela no Hospital Nossa Senhora das Graças. Sendo atendida com um carinho imenso por médicos, médicas, enfermeiras, enfermeiros, atendentes, fisioterapeutas. Sua aura de Santa em Vida contagia a todos que a ela se dirigem. Daqui, desde este quarto, vamos orando. Sabemos que as orações estão ecoando de todos os cantos, dos seus muitos amigos. Desde o sertão de onde nasceu, atravessando continentes, chegando aos céus, esperando os resultados de sua confabulação com o SENHOR.
 Dona Dochinha, como te amamos!!! O quanto te amamos!!! Esta sua família maior cada vez mais encantada!!!              
Sete Lagoas, às duas e quatro da manhã do dia 28 de março de 2014.

Muitos foram os momentos que ela nos alegrou. 
Foi com alegria que Montes Claros a recebeu quando fez 96 anos!


































sábado, 22 de março de 2014

SOB AS SOMBRAS DO PIQUIZEIRÃO, GERAIZEIROS DO ALTO RIO PARDO MANDAM RECADO A SETE LAGOAS, BELO HORIZONTE E BRASÍLIA.

As frutas servirão de alimento, as folhas, de remédio,
onde as águas saem do Santuário!
As águas não vão secar!
D. Lucia, interpretando Ezequiel, 47.

No dia 20 de março, véspera do Dia Mundial das Florestas, 49 lideranças geraizeiras do Norte de Minas, homens, mulheres e jovens, encontraram-se sob as sombras do Piquizeirão, considerado o maior pé de pequi do mundo. É o último remanescente de uma população de imensos pés de pequi que cobriam as vastas chapadas das altas serras do Espinhaço, entre os municípios de Montezuma, Vargem Grande e Rio Pardo de Minas. O motivo do encontro: discutirem a proposta de um projeto de lei que torna o Piquizerão patrimônio material das comunidades geraizeiras e darem continuidade na luta pela criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável – RDS - Nascentes dos Gerais.

Irmã Iria Maria animou a celebração relembrando as mulheres bíblicas que tanto resistiram contra a violência e a exploração. Não sem razão, pois, no dia 01 de março de 2014, conforme consta de Boletim de Ocorrência de número REDS 2014-004704329-001 emitido pelo 3º GP/2 Pelotão da Polícia Militar de Salinas, duas mulheres geraizeiras, a jovem Thayres Santos, de apenas 18 anos e sua mãe, Maria Joelice, foram covardemente humilhadas e presas, sendo conduzidas algemadas até a delegacia de Novorizonte. Motivo? Por filmarem e denunciarem a violação de direitos que estava sendo cometida pela guarnição da Polícia Militar em suas residências em função de uma denúncia anônima que resultou na ordem de busca e apreensão de armas na propriedade de Orlando, uma das lideranças do Movimento Geraizeiro. Nada foi encontrado.

Em mais uma tentativa de criminalizar as comunidades que resistem contra a degradação dos cerrados e de suas águas, as duas mulheres tiveram os seus direitos humanos violados. Por protestar de forma organizada e pacífica contra o avanço de milhares de ha da monocultura do eucalipto implantada em territórios das comunidades tradicionais geraizeiras, exatamente nas cabeceiras e áreas de recarga. O que está por traz são os interesses de empresários que a todo custo tentam dar continuidade na grilagem de terras públicas no Norte de Minas contando com o beneplácito do judiciário e do governo do estado.

Sob as bênçãos do Piquizeirão as lideranças narraram os 12 anos de luta pela proteção de seus territórios e pela criação da RDS Nascentes dos Gerais (anteriormente RESEX Areião Vale do Guará) em uma área de 38 mil ha que ainda se encontra parcialmente protegida contra a cobiça dos carvoeiros associados ao complexo Siderúrgico Florestal de Minas Gerais. Narraram mais de uma dezena de empates promovidos por mulheres, homens e jovens para evitar que as máquinas subissem ao Areião, o corte a foice de 120 ha de mudas de eucalipto que foi plantado em uma das nascentes do Córrego Vale do Guará, as Romarias do Areião realizadas anualmente, o plantio de quase 2 mil mudas de árvores nativas nas nascentes e áreas degradadas e a instalação do Acampamento Geraizeiro Quintino Soares com o apoio da OLST, no município de Montezuma. 

O Sr. Mito lembrou que neste Acampamento, em apenas 20 dias, colheram 7.200 caixas de pequi que foram carregados para Brasília e Goiânia em 12 caminhões trucados. Que todos os pequis foram coletados do chão, sempre com a preocupação de deixar outros tantos para os animais ou para a regeneração dos cerrados. Que, apesar da perda de praticamente 100% das lavouras em função do terceiro ano seguido de seca, tiraram uma renda bruta de R$ 72.000,00 (setenta e dois mil reais), distribuídos entre as 35 famílias que ainda vivem no Acampamento. Ele lembrou: ainda vivem porque hoje estamos entregando o acampamento em função de mais uma ordem de despejo, agora em favor da Fazenda Estância Lagoa da Pedra, de Sete Lagoas. Tramitando há mais de um ano na Vara Agrária, o ICMBIo, apesar de seguidamente alertado, não entrou  como parte da ação reclamada pela equipe de advogados que vem defendendo na justiça, as famílias geraizeiras que lutam pela criação da RDS. Por isso o despejo.

Mas, os Geraizeiros deixaram claro os recados que enviam à Sete Lagoas, à Belo Horizonte e à Brasília: não vão deixar a Empresa Estância Lagoa da Pedra cortar um pé de planta nativa do cerrado e que nenhum caminhão de carvão vai sair da área de terra pública que estão tentando grilar; não vão aceitar que o Governo de Minas Gerais faça nenhum contrato de arrendamento com empresas eucaliptoras e que vão denunciar à Comissão de Direitos Humanos da ALMG as seguidas violações de direitos promovidas pela Polícia Militar de Minas Gerais; e que vão entregar a própria vida na defesa do território tradicional geraizeiro apesar da omissão do ICMBio e do Ministério do Meio Ambiente que reluta em criar a RDS em função dos interesses escusos de empresas – eles afirmam: “a guerra está apenas começando, é a guerra pela vida!”

Montezuma, aos 20 de março de 2014