segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Cacunda de Librina

ou

Quando as delicadas névoas são tomadas 
pelas densas fumaças das carvoarias



Se o homem destrói ele paga por isso, 
só que nós estamos pagando por uma coisa que não foi nós o culpado direto ... esse é o famoso progresso para desenvolver a região!

Ontem o Arcilio Elias dos Santos pediu licença a seus familiares e amigos e resolveu dar um passeio no céu. Assim, de repente, sem avisar a quase ninguém, ele nos deixou.

Quem é o Arcilio Elias dos Santos? 

Se você fizer uma pesquisa no Google ou em qualquer outro sistema de pesquisa na web, de cara aparecem dois rumos de arquivos relacionados: um primeiro onde reportagens e artigos em que Arcílio é apresentado como geraizeiro e as notícias fazem relação a lutas contras as monoculturas de eucalipto, com mapas de conflitos ambientais, ou como agricultor em um livro intitulado Agricultores que cultivam árvores no Cerrado - seu nome está lá. O outro rumo de arquivos está relacionado com a justiça e neste caso aparecem os Menegheti, a Replasa, a Florestaminas, processos que estampam conflitos relacionados com grandes plantações de monoculturas de árvores nos sertões de Minas Gerais.

Mas, se você colocar no sistema de pesquisa do Google ou de outro sistema qualquer o nome Cacunda de Librina, de imediato a web mostra um sem número de sites onde um documentário é apresentado em que o geraizeiro Arcilio é um dos personagens centrais. Neste documentário ele conduz uma leitura inusitada sobre os cerrados, sobre os seus povos, suas agriculturas, debatendo inclusive com os grandes pesquisadores da ciência florestal a partir do olhar de um intelectual nativo, geraizeiro, catrumano. Com profundidade e leveza, ele vai contando histórias ao sair de sua casa desde a comunidade de Vereda Funda, município de Rio Pardo de Minas, em direção à II Conferencia Geraizeira que aconteceu em 2007 na comunidade de Vale do Guará, município de Vargem Grande do Rio Pardo. Uma caminhada em que ele vai encontrando outros iguais com preciosos relatos de um povo desconhecido para a maioria dos brasileiros. Não deixe de fazer esta pesquisa. De qualquer maneira, deixamos aqui o endereço de um dos sites:

No dia 26 de dezembro de 2014 o Brasil perdeu um ilustre personagem, mesmo que desconhecido para a maioria dos brasileiros. O geraizeiro Arcílio Elias dos Santos foi um dos percussores da revitalização das antigas chácras, um sistema de produção de café sombreado associado com ingás e também com o milho, mandioca, cana, abóboras e um sem número de outras espécies frutíferas cultivadas e nativas e que possuem uma história de pelo menos 200 anos. Eu mesmo tive a oportunidade de contar as espécies manejadas em uma destas chácras em 2007. Contei, em uma área de menos de 1 ha, um total de 33 diferentes espécies e 57 distintas variedades que eram manejadas pelas famílias geraizeiras para diversos fins[1]. Um verdadeiro tesouro genético, um banco de germoplasma vivo mantido sob o bosque dos Cerrados e formações de transição de Mata Atlântica. Estas chácras quase que foram totalmente eliminadas durante a ditadura militar brasileira, pois foi de sobrevoo que os militares e burocratas governamentais enxergaram esta região como “vazios” econômicos e também de gentes. Neste sobrevoo as Chácras foram confundidas com os Cerrados aparentemente não antropizados. A produção que daí saía não fazia parte das estatísticas do IBGE.

Em poucos anos, com financiamento e infraestruturas públicas, grandes plantações de monocultura de eucalipto passaram a dominar a paisagem dos gerais sem fim onde o nosso Arcílio vivia. Chegaram os tratores com correntões, os machados cederam lugar às motosserras, os fornos de carvão substituíram os engenhos: o Governo de Minas arrendou ou alienou estas terras a firmas de reflorestamento como se aí não vivessem ninguém. Nos anos 1970 e início dos anos 1980 não vivíamos em um Estado de Direito e as poucas vozes de resistência foram caladas por jagunços ou militares. As chapadas foram tomadas pelas grandes plantações de eucalipto, as águas secaram e o pouco que restaram foram contaminadas, as chácras foram abandonadas, encobertas pelo manto da modernidade, pelas fumaças das carvoarias e pelo trabalho escravo.

Na década de 1990 o Sr. Arcílio, ao assistir uma palestra do engenheiro florestal Álvaro Carrara do CAANM[2] sobre agroecologia e sistemas agroflorestais, foi um dos primeiros que rumou para sua chácra associando estes novos conhecimentos com o conhecimento centenário dos geraizeiros do Alto Rio Pardo. E, poucos anos após, passamos a tomar o café do seu Arcílio, torrado e empacotado na comunidade de Vereda Funda, hoje Projeto de Assentamento Agroextrativista Veredas Vivas. Foram centenas de visitantes que, a partir de sua chácra, refizeram o caminho de volta em direção a um futuro mais sustentável, aplicando os conhecimentos que ele, que sua família, que sua comunidade acabou por se tornar referência. Hoje a Embrapa Cerrados, o CENARGEN, o ICA UFMG, a UNIMONTES, entre outras instituições de ensino e pesquisa mantém ali diversos projetos de pesquisa e extensão.

O Sr. Arcílio foi um dos condutores, e o fez com muita maestria, participando da Rede Alerta contra o Deserto Verde, de visitas de intercâmbio com o Espírito Santo e Sul da Bahia, na construção da proposta de autodemarcação de território geraizeiro, na articulação com a Via Campesina para a retomada do primeiro território tradicional geraizeiro, hoje um projeto de assentamento agroextrativista que está sendo implantado pelo INCRA de Minas Gerais. Foi com a experiência de agricultor, de guardião da agrobiodiversidade e de militante que o levou assumir um cargo de diretor no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Pardo de Minas, a militar no recém criado Movimento Geraizeiro, passando então a animar muitas outras lutas, a revitalizar muitas outras chácras, a levar esperança a muitas outras comunidades encurraladas pela monocultura do eucalipto.

Estas são algumas das facetas de nosso amigo Arcilio que foi tão precocemente vitimado por uma doença que se queria livre nos sertões de Minas Gerais – a Doença de Chagas. Esta é uma herança que os serviços de saúde pública de Minas Gerais e do Brasil mantêm convenientemente no anonimato. São muitos os jovens, as jovens que por aqui morrem de repente, assim, sem tempo de avisar a ninguém. Assim foi com o nosso Arcílio. Um profundo conhecedor dos cerrados, de suas dinâmicas ecológicas e hidrológicas, um profundo conhecedor da alma humana, pois com seus casos, com sua forma de contar histórias de uma maneira aparentemente tão despretensiosa, ele navegava nas mais profundas filosofias.

Eu até acredito, eu até penso comigo, que tem institutos de pesquisas que são comprados pelos grandes plantadores, ou pelas certas entidades do governo, 
que as pesquisas deles são compradas para falar perante o povo 
que isto não traz problema de água ...


Uma homenagem da Equipe do CAA NM aos familiares e amigos de Arcílio.




Foto: João Roberto Ripper
Texto: Carlos Dayrell



[1] Veja em Monção & Dayrell  A Cachaça No Contexto Histórico, Cultural e Econômico da Região do Alto Rio Pardo – Minas Gerais. Relatório Final, Setembro de 2007.
[2] Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas.




Um comentário:

Adileine Peres disse...

Que linda história de vida. Hoje consumo o café cacunda e gosto muito.