sábado, 15 de novembro de 2008

GENEROSIDADE SERTANEJA


O Rio São Francisco entrou na pauta nacional. O rio que já foi da unidade nacional, depois de décadas de esquecimento, virou tema de debate e de proposições. De um lado, os que querem as águas para seus negócios econômicos de grande monta, os que vendem a ilusão de que suas águas podem aplacar a sede dos Nordestinos. De outro, os que defendem a revitalização do rio, cujas águas demonstram que está “enfermo”, precisando de um “gole de água” como bem disse o atual bispo de Barra, D. Frei Luiz Cappio.

O Rio São Francisco entrou na pauta; pescadores de fim de semana descem e sobem em suas lanchas potentes, com seus guarda-sois coloridos; o Vapor Benjamim Guimarães se enche de turistas descendo do porto de Pirapora até a Barra do Guaicui, vinte quilômetros de um passeio cujo apito reverbera saudades por mais de mil quilômetros abaixo, lembrando tempos esquecidos na memória de maquinistas, do povo da marinha e do povo ribeirinho que clama ser ouvido.

Escondida do lusco-fusco da mídia, dos debates sobre o destino do rio, dos vapores, das lanchas potentes, não se vê que uma mulher, pequena e magra, ainda antes do sol raiar quase que diariamente desce até o porto da cidade de Manga, norte de Minas Gerais. Ali, escondendo do sol que breve virá forte, na sombra de um chapéu de palha de abas largas, esta mulher pega uma canoa de madeira roliça, equipada com um pequeno motor de popa, e sai para o seu trabalho diário. Passa pela Ilha do Pau de Légua, em seguida ou outro dia na Ilha da Ressaca, na Ilha do Pau Preto, da Ingazeira ou no Quilombo da Lapinha.

Em um trabalho tão miúdo, de conversas nas cozinhas cujo fogão de lenha está assentado em um jirau sustentado por quatro paus roliços, em casas também de pau a pique, esta pequena mulher, aqui e acolá vai conversando, ouvindo, sugerindo, fazendo reuniões com pequenos grupos, com grupos maiores, nas escolas, nas sombras de umbuzeiros ou dos joazeiros, estimulando as mulheres e os homens em suas organizações religiosas, comunitárias, a buscarem e encontrarem esperanças de dias melhores: de um rio cujas lagrimas de sofrimento escorrem nos rostos destes homens e mulheres que, como o rio, sentem o entupimento de areia, a contaminação de suas águas, o secamento de suas lagoas criadeiras. E a esperança vem quando suas danças de batuque, que até outro dia ainda aconteciam em momentos de muita intimidade, hoje podem sair e são chamados para se apresentarem com suas vestes coloridas em palcos de escolas ou até mesmo de cidades importantes como Montes Claros, Belo Horizonte ou na capital federal. A esperança aumenta quando organizações, estudantes e professores de escolas federais chegam para ouvi-los o que tem a dizer sobre seus modos de vida, como labutam as terras crescentes, suas pescadas que, ao contrário dos pescadores de fora, só acontecem no aconchego da noite, de suas danças e crenças. Suas esperanças aumentam quando são elogiados pela sua culinária tradicional, ou o tradicional artesanato de madeiras e sementes passam a ser requisitados pelos que vem de fora. Suas esperanças aumentam quando puderam dizer, pela primeira vez, para autoridades estaduais e federais, deputados e senadores, quem são, como vivem e o que querem. E então se apresentam como Vazanteiros, um povo ilustre, mas desconhecido das autoridades, um povo que foi e continua sendo portador de um legado de referencia na formação da sociedade brasileira. Se sentem importantes ao descobrir que na constituição brasileira eles foram sutilmente lembrados em seus artigos 215 e 216. E agora querem ser ouvidos. Como na carta que enviaram ao Presidente Lula, em 27 de maio de 2006: “O rio São Francisco não pode ser recuperado, revitalizado, como vocês agora estão dizendo, sem nós, o povo Vazanteiro. A história conta, é nosso dever, nosso direito, e obrigação dos senhores”
[1].

Não se pode falar dos Vazanteiros sem nos lembrarmos do trabalho incansável desta mulher miúda, magra, que deixou a cidade de Teófilo Ottoni há quase trinta anos atrás e veio para o Norte de Minas. Desta mulher que se chama Zilah de Matos e cuja vida de mistura com a vida dos camponeses do sertão de Minas Gerais.

Carlos Alberto Dayrell, técnico do CAA NM relata o seu primeiro contato com Zilah de Matos:
"Lembro-me muito bem de como a conheci. Foi em 1985. Trabalhava como técnico do governo do estado de Minas Gerais em um programa de desenvolvimento rural na cidade de Jequitaí, Norte de Minas. Um grupo de lavradores que na época da seca trabalhavam na exploração do quartzo, produto utilizado pelas indústrias siderúrgicas na fabricação de ligas de ferro-silício, este grupo pediu que fizéssemos uma reunião na região onde trabalhavam, o alto de uma serra que ficava a cerca de quinze km da cidade. Pediram-me que no dia da reunião eu levasse de carro uma educadora da FETAEMG que deveria participar da reunião. Esperei pela mulher até a hora indicada, ela não aparecendo, resolvi subir a serra para a reunião que estava marcada para as 9 horas da manhã. Ao chegar, expliquei que a mulher não havia aparecido e resolvi subir a serra para não atrasar a reunião. Notei que eles ficaram meio desapontados, mas prosseguimos com a reunião. Ao aproximar de meio dia, já no finalzinho, esta mulher chega até onde estávamos reunidos, suada, ainda ofegando. Tinha subido a pé os 15 km serra acima. Os semblantes de todos mudaram perceptivelmente. A alegria tomou conta do que seria o final da reunião. Pois ela continuou, após um lanche compartilhado pelos que tinham algum alimento em seus barracos improvisados. Foi assim que conheci Zilah de Matos, de quem acabei me tornando um amigo, um aprendiz, pois com ela tive a oportunidade de encontrar por muitas outras vezes, em situações semelhantes."

Neste caso dos garimpeiros da Serra do Capador, graças a sua persistência, os mesmos conseguiram negociar com a empresa siderúrgica entregar diretamente o produto de seu trabalho sem intermediários. E em uma negociação envolvendo as autoridades, 51 famílias receberam o título de 250 hectares de terra para continuarem cultivando seus terrenos.

Alguns anos após, ela já desenvolvia um trabalho de acompanhamento aos sindicatos dos trabalhadores rurais de Porteirinha e Riacho dos Machados como agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra, onde milita até hoje. Em Riacho dos Machados, assessorou uma comunidade tradicional de geraizeiros que praticamente estavam com um pé fora de suas terras frente à pressão que enfrentavam para saírem de suas terras. De um lado, uma empresa reflorestadora que estava plantando eucalipto desmatando os cerrados e as veredas que lhes forneciam água e alimentos. De outra, a omissão do poder público municipal e do INCRA que chamado para negociar emitiu um laudo desaprovando a qualidade das terras para implantação de um assentamento de reforma agrária. Foi quando a reencontramos, agora trabalhando pelo Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas. Ela solicitou que o CAA elaborasse um laudo avaliando a viabilidade da implantação de um assentamento em parte da fazenda requerida. Em função de seu trabalho, pudemos avançar na compreensão da lógica produtiva desta comunidade geraizeira. Zilah de Mato deu uma grande contribuição na intermediação deste conflito envolvendo o INCRA e a empresa reflorestadora, levando a uma negociação que viabilizou a implantação de um assentamento de reforma agrária. Hoje, esta comunidade é uma referência estadual e mesmo nacional como um assentamento agroextrativista em áreas de cerrado, conhecida como Assentamento Tapera. Neste mesmo período, a partir de sua assessoria ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha, criou as bases para esta organização tornar-se uma referência como organização de agricultores familiares na divulgação da agroecologia.

Em 1998 aceitou outro desafio ao mudar para a cidade de Manga, às margens do rio São Francisco e na divisa com o estado da Bahia. Esta era uma região que nas décadas anteriores sofreu uma grande transformação em virtude dos grandes projetos agropecuários e de irrigação que lá se instalaram com pesados subsídios governamentais. Com uma história de mais de 300 anos de ocupação por comunidades negras, indígenas (Povo Xakriabá), ou nordestinas que aí chegavam como refugiados da seca, o cercamento das fazendas e a degradação ambiental foram inviabilizando o modo de vida destas populações nativas. Com um trabalho miúdo, imperceptível até, passou a levar esperanças a comunidades de homens e mulheres que viviam destituídas de seus direitos básicos de acesso à água, à terra, à educação.
Trabalhando em pequenos grupos, envolvendo mulheres, crianças e jovens, viabilizou o acesso à água de comunidades inteiras que tinham caminhar quilômetros em busca deste liquido vital. Também em pequenos grupos, pequenas iniciativas produtivas como apicultura, criação de animais, roças, artesanato, hortas e farmacinhas comunitárias, passaram a gerar alimentos, remédios e excedentes na renda familiar. Mas, e principalmente, seu trabalho junto às comunidades vazanteiras, até então completamente desconhecidas pelos poderes públicos, vem criando as condições para que eles comecem a reivindicar suas políticas especificas. Entre estas, a pela revitalização do Rio São Francisco do qual são profundamente conhecedores, rio, do qual, as suas vidas dependem.
Os sertanejos que cruzaram pelo caminho desta mulher miúda reconhecem o seu mérito, com ela compartilham esperanças de dias melhores para todos. O reconhecimento do mérito do trabalho desta cidadã brasileira merece extrapolar os limites do sertão. Vai contribuir não apenas com a sua pessoa, muito valiosa que é, mas, principalmente, com o desenvolvimento de seu trabalho junto a povos e comunidades tradicionais. Um trabalho que não aparece em relatórios, em publicações, em livros ou revistas, mas que se constitui um germe de esperança para um Brasil que reconhece e respeita o legado dos povos que forjaram a Nação Brasileira.
Montes Claros, agosto de 2008

Foto 1 - Arquivo CAA - Foto 2 Elisa Cotta

[1] Conforme: Carta manifesto das mulheres e homens vazanteiros – Povos das Águas e Terras Crescentes do São Francisco. Maio de 2006.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Tem sido assim

Quando me dou conta,
quando você escancara
minha arrogância
Se pergunto por saudades de mim,
busco esperança,
busco poesia e vida nos desertos,
miragens que vão e voltam
e não se encontram mais

Tem sido assim
andando por caminhos indivisíveis
pisando em solo sagrado,
santos não me recebem,
procuro lugar mundanos,
conversas e beijos alucinantes
Ouço Haendel, mas a vida não volta
a vida não volta . . .

E é bom que seja assim
Quando você escancara minha arrogância
tanto amor quantas vezes tanta dor
então é que dou conta da minha insignificância
Não se extingue o passado
com emoções soltas em abrigos antiaéreos

E é bom que seja assim
Quando cai uma chuva em Jerusalém
o que é uma chuva em Belém do Pará?
Nestes vendavais que levam chuva, semente e calor
no furor das tempestades
O que é um amor neste universo ?

Recicla calor, umedece a terra
é apenas um amor
é apenas um amor
mais um amor na sua vida
um amor na sua vida

ASSIM É A GRANDE VIDA


Saindo de Buritizeiro por uma estrada tortuosa que passa pelo rio das Pedras, a gente encontra um platô onde os pequizeiros são abundantes no meio das pastagens. O terreno é arenoso.

A estrada sinuosa deixa o platô e sobe dois patamares antes de chegar numa imensa chapada. Predomina uma campina e diversas veredas. Buritizais de todo tamanho drenam os tabuleiros. Os cerrados aqui tem arvores de todo tipo, muitas oferecem frutos saborosos como os pequizeiros, cagaiteiras, mangabeiras, e outras mais como o rufão, a fruta de leite ...

Esta chapada faz contato com uma imensa serra, qual uma costela saliente num meio de um planalto sem fim: é a Serra dos Alemães. Tem esse nome, segundo os antigos, por aqui ter passado, ainda no século XVIII, um alemão que procurava minerais ou pedras preciosas. Dele não se teve mais notícias mas ficou a serra na lembrança dos seus moradores.

Outro dia percorri este caminho. Fui parar na casa de João Moló, um agricultor com seus mais de 80 anos, mora, já não se sabe há quanto tempo, nessas veredas da margens esquerda do rio São Francisco. Seu rosto moreno, cabelos escorridos, olhos pequenos, maçã do rosto saliente, não mostra a idade que tem. Magro mas empertigado, caminha com desenvoltura pelo quintal, pela casa cujas paredes são de adobe e uma cobertura bem trançada de palhas de buriti. Lá dentro pouca mobília, o fogão em brasa esquenta uma chaleira de café.

Conheci João Moló, anos atras, numa luta dos moradores da Vereda do Jatobá para não serem despejados pelo que se dizia ser o novo proprietário destas chapadas e tabuleiros, uma história que se repete há mais de três séculos. Muitos dos moradores se foram, outros voltaram anos mais tarde, outros tantos resistiram – este foi o caso de João Moló.

Sentei para conversar com ele, uma conversa de fim de tarde, sentando num banquinho feito de talisca dos pecíolos das folhas de buriti. João Moló era de boa conversa. Da última vez que havia me despedido dele, me cochichou no ouvido: tenho um assunto com você, não é para agora, venha aqui no findar do mês de outubro. Já tinha me esquecido. No entanto, quinze dias atras o Dionísio me ligou pedindo para fazer um estudo lá nas Veredas do Jatobá. O sindicato tinha que apresentar uma proposta para o IBAMA parar de incomodar os moradores da vereda.

Pois coincidiu que era o fim de outubro. Já havia feito o que tinha para fazer. Cheguei chamando-o de longe para dar tempo do João sossegar os cachorros, desses que você não dá muito por eles, magrinhos, esquivos, mas valentes o suficiente para colocar qualquer cão de raça no bolso. Tinha uma fêmea toda especial, duas manchas pretas nos olhos: a Estelinha.

Sentei no banco que ele me ofereceu. O tempo estava bom este ano, já havia dado duas chuvas, uma parte da roça já plantada, outro tanto ainda para cultivar. Depois de algum tempo de conversa, ele chegou mais perto de mim, com sua voz meio rouca: tenho uma história para te contar. Há muito tempo que procuro a pessoa certa para ouvir o que tenho a dizer. Desde a primeira vez que te vi, senti que era para você escutar o que tenho a dizer. É uma história que não sei bem quando e como começou. Sei dela um pedaço, não sei se do começo, do meio ou do fim. Dela ouvi do meu avô, que ouviu de sua avó, e daí para traz não sei mais como foi passada.

Há muitos anos atrás, antes ainda do povo branco chegar, tinha uma tribo de índios que moravam nestas redondezas. Eles eram conhecidos como Abatirá – que significava grimpas levantadas. Muitos tinham os cabelos levantados, “assim ó”, me dizia o João, levantando os cabelos, negros e encorpados apesar de sua idade, da fronte para cima.

Foi uma história longa que o João Moló me contou. Dos índios, como viviam aqui antigamente, caçando veados, tatús, porcos do mato, coletando ovos de ema, passarinhos, e as roças de mandioca, milho, abóboras, até um feijão que florava muitas vezes, desses que nós comemos hoje, “será do catador?”.

E ele falava das veredas de antigamente, dessas que inda hoje se pode ver onde tem do seu povo, as campinas a se perder de vista, campinas ao longo das veredas, fazendo um contato com os tabuleiros, aquele cerradinho que encontra a vereda, feito a linha de uma cobra nos trilhos de areia. Eram já homens, mulheres, meninas, meninos, de tudo que é jeito de alegria, apesar do frio, das andanças ...

Pois teve uma menina que nasceu naquela época, era uma noite de lua cheia, o tempo era chegante com as chuvas, nasceu ali do lado onde o grande rio tem uma barranca, onde suas águas encontram as pedras e saem rolando, roncando nas cheias, ressonando na seca.

De pais andadores, esta menina nasceu quando a lua era só ela no céu, toda. Logo se viu que era de um sangue antigo, renovado. Naluna foi o seu nome. Nasceu quando era tempo de seu povo deixar as vazantes, pois logo o grande rio iria tomar conta de todas as baixadas, iria roncar nas corredeiras, era o tempo dos peixes se criarem e do seu povo, Abatirá, subir as serras: era chegado o tempo de cultivar.

Esta menina cresceu radiante, deu um novo sentido para o seu povo, nas falas, nas danças, nas festas, e ela foi mãe de muitos meninos e meninas. Com os índios era assim: uma grande família, eram todas mães, principalmente, as que sabiam preparar o seu povo quando chegava um tempo de mudança.

Naluna soube preparar o seu povo para a grande mudança. E este tempo chegou, quando um povo diferente quis tomar conta de todos os lugares. Eles chegavam querendo coisas estranhas, brigando, matando, tomar conta das pedras que brilham como a gota de uma lágrima, pelo limo da cor do sol que desce no cascalho dos rios. Foi um tempo difícil. Ela já havia ido, mas o seu povo estava preparado. E como estava!

De outra vez ela nasceu, era uma noite em que a lua só ela existia no céu, desta vez como um menino, foi um menino que cresceu vendo o povo diferente tomar conta de tudo, os seus iguais já eram bem menos, era tudo mais difícil, muitos viviam no julgo, tinham os homens cor da noite, aconteceu destes homens também se reunirem com os seus iguais, e agora, este menino feito homem, Abatirá, conseguiu reunir todos os povos, de onde vem e por onde vão as águas do grande rio, e reunidos, confederados, fizeram a grande guerra.

As águas lavaram muito sangue, levaram muito sangue, e o homem branco ficou. Os Abatirás entraram serra adentro, outras terras acharam, outras gentes, uns se dispersaram no meio deste povo novo que chegou, outros não se teve mais notícias,
mas o sangue do povo continuou, acantilado, esperando, misturando, uma vivência que só eles sabiam, das terras, dos matos, dos animais, e este foi um tempo sombrio para o seu povo, espalhados pelo sertão . . .

João Moló fez uma pausa. Sua garganta seca pedia um café, entrou no barraco, daí a pouco chegou com uma caneca, me ofereceu, tomei, e eu ficava querendo entender desta história, porque ele me chamou para contar.

O sol esmorecia na vertente da serra dos Alemães. Do outro lado, o céu ensobrecia na meio das folhagens dos buritizais, os assanhaços rebicavam as mangas que maduravam, queria perguntar para João Molló o porque da história, mas me silenciava com a grandeza deste homem antigo. João juntou uns garranchos, fez uma fogueira para espantar os mosquitinhos, sentamos de novo nos banquinhos, e ele continuou.

De outra vez, demorou muito para voltar e, quando voltou, muito tempo depois, também foi numa lua no meio de um céu cheio, escuro, era só seu brilho que se via, aí as barrancas já tinham um nome, de uma gente que carregava também o sangue dos antigos, Buritizeiro ficou sendo o nome do lugar. Nasceu desta vez com o nome de Luana, o nome que tinha o sangue dos antigos, chegou para um tempo que se avizinhava, de muitas mudanças, de muitas dúvidas, mas seria também o tempo do retorno, o tempo em que o sangue dos antigos iria se fazer presente, restaurar a possibilidade do viver, do viver de todos, numa terra em que o sagrado iria deixar de ser apenas um rito, apenas uma esperança, mas um sagrado que iria reconstituir a harmonia perdida nas brumas das fumaças que ensombreciam o céu das grandes cidades.
Quando Moló terminou de me contar a história a noite avançava gerais adentro. Fiquei muito pensativo querendo entender a sua historia.


Ele me olhou e disse apenas:

A mesma água, como o suor do nosso corpo, que desaparece com a brisa do entardecer, ela volta como chuva, umedece a terra, alimenta as plantas, restaura a força das veredas, chega ao grande rio, que se larga no grande lago, e de novo volta, no tempo certo, como chuva para carregar a bica, de onde com uma cuia você a toma, para saciar sua sede.
Assim é a grande vida !



Montes Claros, 30 de outubro de 2000

sábado, 1 de novembro de 2008

Agricultura de alta tecnologia x agroecologia? Onde está a contradição?

A chamada agricultura de alta tecnologia consegue hoje chamar a atenção, na verdade causar um grande encantamento na sociedade midiática, que a enaltece como o supra sumo do desenvolvimento científico. O que vemos, na verdade, é um setor de negócios da sociedade se assenhorar da ciência como se ciência só fosse a sua capacidade de desenvolver insumos para viabilizar o desenvolvimento da agricultura. O que acontece é que este setor que se auto denomina de alta tecnologia – deveria denominarmos de fato – de altos e caríssimos insumos –não deixa de ser também um atraso da ciência. O grande esforço científico que temos pela frente é compreendemos mais a natureza, seus mecanismos de funcionamento em geral, e, em particular, compreendermos mais a biodiversidade, os seus complexos mecanismos de alto regulação ecossistêmicos nos campos de cultivo. O desafio é o de trazemos, aproximarmos mais a ecologia para a agricultura e vice versa, potenciarlizarmos os aspectos funcionais da biodiversidade e dos ecossistemas. Este é um conjunto de ações que a agroecologia tem como demanda, então sim poderíamos denominar de alta tecnologia.
Então o que nós vemos é um setor de negócios da sociedade se apoderar de recursos públicos, promovendo o desvio de recursos públicos da ciência para os seus interesses, para desenvolver o que lhes interessa, e de outras formas, impedir o devido desenvolvimento da ciência que vai contra esta acumulação insensata de capital nas mãos de poucos.
A agricultura de altos insumos é um diploma de nossa incapacidade de compreendermos a natureza, os processos ecológicos, e de promover o desenvolvimento da agricultura a partir de uma melhor articulação com a natureza e com os seus potenciais ecossistêmicos.
A agricultura de altos insumos brecou este processo principalmente a partir do século XIX, onde o desenvolvimento do conhecimento científico associado à química, à genética, aos motores de combustão foi rapidamente direcionado para atender aos interesses de um setor da sociedade, o que levou ao desenvolvimento de insumos e máquinas que se tornaram objeto de negócios, de lucro. O pior que aconteceu nesta sua capacidade de articular recursos financeiros e humanos, foi o de brecar o desenvolvimento em outra linha de pesquisas que vinha se desenvolvendo e que estava associada às bases do que posteriormente veio se denominar de agroecologia.
Um exemplo: quando um inseto se torna praga em um campo de lavoura, isto acontece devido a uma perturbação ecológica que propiciou um aumento desmedido e momentâneo de sua população. Temos então pela frente, um grande desafio de compreender os mecanismos que provocaram esta perturbação e de desenvolver uma tecnologia ou uma técnica (ecológica, neste caso) que contribua com a natureza no reestabelecimento da homeostase, no restabelecimento de re-equilíbrio em níveis que não comprometa a produção naquele campo de lavoura. Temos então um investimento em pesquisa que vai demandar estudos, capacidade de observação, inventividade, na verdade uma série de valores do pesquisador em interação com os agricultores e com os campos de lavoura na busca de uma solução do problema. Solução que se inicia principalmente na busca do entendimento sobre a origem do problema. Mas para onde nos leva a “ciência comprometida com o setor de altos insumos”? Apresenta-nos uma solução rasteira, porque a sua solução foi o desenvolvimento de um produto que simplesmente vai inviabilizar a vida daquele inseto, que vai tentar exterminar aquele inseto. É uma solução que inviabiliza a vida não apenas daquele inseto, mas de uma gama de outros insetos que está associado seja diretamente em sua cadeia alimentar, seja de uma maneira generalizada com todos os insetos daquele campo de cultura. Ou seja, a intervenção técnica proposta provocou um maior desequilíbrio, um desequilíbrio que vai aumentar cada vez mais, necessitando sempre e mais produtos e produtos. Ou seja, se torna assim um bom negócio, porque sempre vamos ter os agricultores necessitando de comprar este produto. Isto sim, este setor da ciência pode muito bem ser denominado "baixa tecnologia", um atestado da nossa incompetência.